Título: O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CUSTO BRASIL
Autor: Jerson Kelman
Fonte: O Globo, 16/06/2006, Opinião, p. 7

Dois procuradores do Ministério Público Federal propuseram ação de improbidade administrativa contra o presidente e o diretor de licenciamento do Ibama, por terem concedido licença ambiental prévia para as obras do chamado projeto de transposição do Rio São Francisco em suposto desacordo com ressalvas constantes de relatórios técnicos de funcionários do próprio órgão ambiental. Tenho convicção de que, mesmo se a Justiça decidir contrariamente ao entendimento dos procuradores da República, o efeito deletério da simples proposição da ação sobre a eficácia da administração pública não será eliminado.

Em todo o mundo, discussões sobre transferências de água entre bacias hidrográficas sempre despertam discussões técnicas e paixões políticas. Recentemente, o governo dos Estados Unidos teve de arbitrar um conflito entre governos estaduais que divergiam sobre o uso da água transposta do Rio Colorado para o Oeste americano. Sem a transposição, a maior parte da colonização da Califórnia, incluindo a cidade de Los Angeles, simplesmente não teria sido viável. No Brasil não é diferente. As regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo também não teriam água para abastecer suas populações sem as transposições de águas dos rios Paraíba do Sul e Piracicaba, respectivamente.

Existem dezenas de milhões de brasileiros que se opõem à transposição. E dezenas de milhões que são favoráveis. No regime democrático cabe ao governo eleito a decisão sobre temas polêmicos, quando a unanimidade é impossível de ser alcançada. Aplica-se o princípio da prevalência do interesse da maioria, com respeito aos direitos básicos das minorias.

Não é o que se observa no Brasil: os dois procuradores têm, na prática, mais poder para influenciar uma decisão dessa magnitude do que o presidente da República.

Pela Constituição, cabe ao Ministério Público zelar pelos interesses difusos da sociedade. O difícil é identificar esses interesses. São os ostensivamente bradados pelos que compareceram às audiências públicas para licenciamento da transposição do São Francisco? Os defendidos apaixonadamente pelo bispo que mora às suas margens que imagina que a transposição possa ¿matar¿ o rio, ao contrário do que revelam os estudos técnicos respeitados? Ou os interesses da população do Nordeste setentrional que não tem garantia de água para beber e produzir?

São os interesses das populações atingidas pela instalação de uma usina hidrelétrica, e que certamente merecem justa compensação, aliados aos interesses de pessoas sensíveis que gostariam de ver a Natureza intocada, ou também os interesses de toda a população brasileira que almeja usufruir os benefícios da eletricidade, incluindo geração de riqueza e criação de empregos?

A maioria dos membros do Ministério Público privilegia corretamente, entre tantos interesses difusos, aqueles que são mais abrangentes e que afetam a vida dos mais humildes. Porém, há os que têm ouvidos mais sensíveis para captar os reclamos estridentes da camada da população mais educada, já livre da pressão cotidiana pela busca do emprego e da sobrevivência. Como o Ministério Público não tem estrutura hierárquica que permita filtragem de eventuais excessos de alguns de seus membros, a ocorrência de iniciativas bem-intencionadas, mas desprovidas de visão de conjunto, torna-se uma certeza probabilística.

A garantia constitucional que impede uma ação disciplinada do Ministério Público tem como resultado a diminuição da eficácia governamental e, por conseqüência, o aumento do custo Brasil. Fica cada vez mais difícil convencer um profissional capaz e honesto a aceitar cargo de direção na administração pública se, pelo efeito de alguma decisão sobre tema complexo, eventualmente discordante da opinião de seus subordinados, e sem qualquer evidência de que a decisão tenha sido viciada por interesses subalternos, estiver sujeito a suspeição sobre sua probidade. Uma pessoa séria que aceitar o risco de permanecer na atividade pública terá a tendência de protelar decisões difíceis. Se o presidente do Ibama tiver bom senso, no próximo pedido de licenciamento ambiental polêmico pedirá um estudo sobre a influência do empreendimento na órbita de Saturno.

JERSON KELMAN é diretor-geral da Aneel.