Título: VANDALISMOS E ANTIJOGO
Autor: CHICO ALENCAR
Fonte: O Globo, 17/06/2006, Opinião, p. 7

Já que em tempos de Copa o mundo é uma bola, a escalação do time do Poder Público no Brasil poderia ser Improbidade, Suborno, Desvio, Nepotismo e Estelionato Eleitoral, Formação de Quadrilha e Fraude, Prevaricação, Abuso de Poder, Caixa Dois e Remessa Ilícita. Os estudiosos da nossa cultura política dirão, com razão, que estas são tradições nacionais, que a corrupção é sistêmica e crônica. Mas com ela estamos ficando cada vez mais distantes do desempenho almejado, que é transitar do país empresa-para-os-outros que somos rumo à nação menos desigual e mais justa que podemos ser.

A desmedida violência cotidiana é a expressão mais cruel da nossa crise. O jovem ¿detonauta¿ Tico Santa Cruz declara que o time da representação republicana está muito mal escalado quando diz, na emoção do adeus a seu companheiro de banda, Nettinho, que ¿as pessoas estão preocupadas com outros valores (...) e esquecem o básico, que é a honestidade e o respeito pela vida humana¿, torcendo ¿para que também haja baixa do lado de lá, da corrupção¿. O vandalismo de trabalhadores sem terra na invasão da Câmara revelou, além de insensatez, profundo desprezo pelos representantes do povo. No seu ódio ao Parlamento, a turba repetiu, de forma direta e tosca, a dilapidação que outros fazem de maneira sutil.

Mas todas as democracias representativas, mesmo as de baixa intensidade como a nossa, têm um ¿técnico¿ responsável pela convocação periódica das autoridades públicas: o povo. Em 1º de outubro próximo este ¿Parreira coletivo¿ será chamado a escalar os novos titulares do Brasil: o presidente da República e seu vice, os governadores dos 26 estados, do Distrito Federal e seus vices, todos os deputados estaduais e federais, um terço do Senado. Os ¿selecionáveis¿ serão milhares: até 75 mil candidatos, de 29 partidos, tentando impressionar o técnico-eleitor com malabarismos, firulas e, aqui e ali, empenho real.

É crescente a tentação para não se interessar mais pelo jogo, tamanha tem sido a mediocridade das partidas. Na base da nossa pirâmide social vai se cristalizando a ¿naturalização da corrupção¿, que entende que os golpes e as espertezas são inerentes ao mundo da política, e que todos, sem exceção, são iguais. Na outra ponta, a elite endinheirada não cogita atender ao apelo de ¿abrir a bolsa¿ feito pelo atual governador de São Paulo, que desabafou como jamais o fizera ao longo de sua trajetória. Afinal, há um ¿caminho único¿ na economia, e tudo, também naturalmente, se ajustará com o tempo. É bom, inclusive, que os grandes partidos fiquem cada vez mais semelhantes, adaptados à ordem globalitária do capital financeiro e das tecnologias que prescindem do trabalho humano. Setores médios, com mais acesso à informação, dividem-se entre os ¿neoconformistas esclarecidos¿, que julgam já ter dado sua contribuição e aposentaram a esperança em dias melhores, e os ainda poucos que, teimosos, não aceitam rebaixar as expectativas de avanços que uma sociedade pode exigir de si mesma.

É a partir destes, chamados por D. Hélder Câmara (1909-1999) de ¿minorias abraâmicas¿, que podemos fazer da campanha eleitoral que se avizinha e da ¿convocação final¿ do dia do pleito um forte movimento de renovação radical da representação política. Praticando o voto consciente, que significa conhecer, além da história de cada candidato e seus compromissos de vida, as propostas básicas dos partidos pelos quais concorrem. E também a maneira como desenvolvem suas campanhas, pois está confirmado que os mandatos, como os treinos em relação aos jogos, são conseqüência destas: se alguém, de variadas formas, tenta comprar votos, não terá pudores em vender o seu, no Parlamento, depois de eleito. Na difícil tarefa de selecionar, é preciso separar o joio do trigo e isolar bem os muitos que buscam imunidade parlamentar para garantir impunidade criminal, sem qualquer identidade com o interesse público.

Lembra o escritor peruano Vargas Llosa que ¿o futebol é o ideal de uma sociedade perfeita. Poucas regras claras, simples, que garantem a liberdade e a igualdade dentro do campo, com a garantia do espaço para a competência individual¿. Rumo a este título, Brasil!

CHICO ALENCAR é deputado federal (PSOL-RJ).