Título: O DNA da violência nas `mulheres do mal¿
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 18/06/2006, O País, p. 12

Jovens e atraentes, Suzane von Richthofen e a canadense Karla Homolka provocaram repulsa e fascínio ao assassinar seus parentes

O que leva uma jovem bem-nascida, atraente e com vida radiosa pela frente a participar de um dos crimes mais perturbadores da história recente? O mal já estava gravado no seu DNA e apenas aflorou dessa forma hedionda, ou resulta do embrutecimento de uma jovem corroída de paixão, reduzida a coadjuvante de um homem brutal?

As perguntas acima não se referem à ¿linda, loura, menina rica¿ Suzane von Richthofen, que participou com os irmãos Cravinhos do assassinato dos pais, a pauladas, enquanto dormiam, e cujo julgamento foi transferido para julho próximo. Constam de um editorial do diário ¿Toronto Star¿ publicado em julho de 2005, às vésperas do dia em que Karla Homolka, uma jovem também loura, bonita e bem-nascida, foi devolvida ao convívio da sociedade canadense após cumprir pena de 12 anos de prisão.

Linha de defesa aproxima casos

Não é a natureza dos crimes de Karla e Suzane que as aproxima ¿ os da canadense são múltiplos e descem a outros patamares da treva humana. É a perplexidade, o fascínio e a subversão de valores sociais tidos como imutáveis que os dois casos provocam junto à opinião pública. E é, sobretudo, a forma como os advogados de defesa retratam suas clientes perante a sociedade e a Justiça.

¿Suzane foi escravizada psíquica e sexualmente por um cafajeste (Daniel Cravinhos)¿, declarou à ¿Folha de S.Paulo¿ o criminalista Mauro Otávio Nacif esta semana, antecipando a linha de defesa que deverá seguir.

¿Existe um vácuo moral em Karla que é difícil, senão impossível de explicar. Nota-se um `entorpecimento psíquico¿ e outras seqüelas de submissão psicológica, sexual, física (ao marido)¿, concluíram os psiquiatras, psicanalistas e terapeutas envolvidos na avaliação de Karla, após 400 horas de confissão da jovem canadense.

Vale relembrar o caso. Karla Homolka tinha 17 anos quando cruzou pela primeira vez com Paul Bernardo, então com 22, numa feira de produtos animais em Ontário. Morava com os pais, sabia-se bonita e estagiava para se tornar veterinária. Paul era recém-formado em contabilidade pela Universidade de Toronto, tinha modos sedutores e físico atraente. Já carregava um sinistro currículo de estupros de namoradas e abusos de vítimas desconhecidas, mas isso Karla desconhecia.

Mal começou, o romance adquiriu contornos tão secretos quanto sombrios, pautado pelas obsessões sexuais de Paul. Uma delas era deflorar virgens. A travessia sem volta ocorreu após uma ceia de Natal na casa da família Homolka. A pedido do namorado, Karla drogou a irmã caçula, de 15 anos, para que Paul pudesse abusar dela enquanto o resto da família dormia. Para isso, recorreu a anestésicos de veterinária e filmou a defloração da irmã com avidez. A adolescente jamais recobrou a consciência: sufocou no próprio vômito durante o estupro. Karla e Paul sumiram com os vestígios do crime e chamaram a polícia, que aceitou a versão de acidente por excesso de bebida.

Passados seis meses, o casal, já noivo, raptou e estuprou uma colegial de 14 anos. As sevícias, também registradas em vídeo, duraram um dia e uma noite. Ao final, a vítima foi morta e jogada num lago. Duas semanas mais tarde Paul e Karla tornavam-se marido e mulher, em cerimônia com carruagem, noivo de fraque e noiva de branco. Já nessa época, sustenta Karla, os tempos em que Paul a tratava como princesa haviam expirado. Ela havia se tornado sua ¿escrava sexual¿. Com abusos verbais e físicos em escalada. Antes de serem descobertos, marido e mulher ainda atraíram para casa outra colegial de 15 anos. Submeteram-na a três dias de horror, revezando-se nas filmagens. Por fim, mataram-na.

A partir daí a brutalidade de Paul passou a se concentrar na própria mulher, levando Karla a ser socorrida pela polícia. O fio da meada de horrores começa então a ser desvendado.

Julgamento sob sigilo absoluto

Karla aderiu ao programa de delação premiada e forneceu as provas que faltavam para condenar Paul à prisão perpétua. Mas omitiu sua participação nos crimes. E foi avaliada como vítima da síndrome da mulher refém do marido. Somente quando as mais de cem fitas de vídeo chegaram à Justiça é que o retrato de Karla Homolka emergiu por inteiro. Tarde para alterar a sentença de 12 anos de prisão obtida com a delação.

O julgamento de Karla transcorreu sob sigilo draconiano. Nem uma linha na imprensa do país, nada na televisão. A sociedade canadense só tomou conhecimento dos horrores praticados pelo casal através de rumores, publicações americanas contrabandeadas dos Estados Unidos ou pela internet. Dezesseis mil exemplares da revista ¿Wired¿, por exemplo, considerada a bíblia dos computeiros inteligentes, chegaram a ser apreendidos no Canadá por conter cinco palavras que violavam o blecaute.

O sigilo de Justiça foi levantado dois anos depois, por ocasião do julgamento de Paul Bernardo. E o Canadá, habituado a atribuir crimes macabros a desvios da sociedade americana, ficou em estado de choque.

Um estudo do caso de Karla Homolka publicado pela acadêmica Anne McGillivray, professora de direito da Universidade de Manitoba, sustenta que a polícia, advogados e juízes ¿ na verdade, todo o sistema legal do país ¿ passaram a ser questionados pela opinião pública. Como conciliar a natureza dos crimes cometidos com o conceito de ¿ausência de autonomia moral¿ de Karla Homolka?