Título: FALTA UMA POLÍTICA ANTI-RACISMO
Autor: ROSANA HERINGER
Fonte: O Globo, 22/06/2006, Opinião, p. 7

Ainda que todas as vagas de todas as universidades públicas do país fossem destinadas aos estudantes negros nos próximos cinco anos, não conseguiríamos, ao final deste período, ter um equilíbrio entre o conjunto dos profissionais negros e brancos formados e a proporção destes grupos na população brasileira. Esta distância para se alcançar uma meta de igualdade dá apenas um exemplo da atual situação de desigualdade de oportunidades entre negros e brancos no Brasil.

Hipoteticamente, mesmo que esta meta de igualdade fosse atingida, não levaria a superação definitiva do racismo e do preconceito. Ao contrário, a presença de um maior número de negros em ocupações e espaços não tradicionalmente subalternos poderia expô-los a situações de discriminação maiores do que as vividas atualmente.

Este é apenas um dos motivos pelos quais continua sendo necessário falar e debater sobre o racismo na sociedade brasileira. A educação anti-racista, através de diferentes estratégias e em variados contextos educacionais, formais e informais, precisa ser ampliada e consolidada, seja na escola, na convivência familiar, entre amigos, nas igrejas, nas organizações comunitárias e nos locais de trabalho.

Como uma das estratégias para ampliar este trabalho de educação anti-racista é que estamos lançando a segunda fase da campanha ¿Onde você guarda o seu racismo?¿, iniciativa de um conjunto de organizações não-governamentais, entre elas a ActionAid Brasil e o Ibase. A campanha pretende colaborar na transformação de pensamentos e práticas arraigados e reproduzidos ao longo de gerações, que muitas vezes transmitimos, mesmo sem nos dar conta.

Estudos no campo da educação demonstram que crianças já a partir dos três anos de idade percebem as diferenças na aparência das pessoas, como a cor da pele, e fazem perguntas aos adultos sobre os motivos desta diferenciação. Já nesta idade, portanto, a responsabilidade dos adultos é muito grande, podendo expô-las a mensagens tanto anti-racistas quanto preconceituosas.

Não foi preciso ir muito longe para identificar e registrar casos de racismo vividos no cotidiano de muitos brasileiros, exemplificados pelos depoimentos poderosos das pessoas que concordaram em relatar algumas destas experiências para a campanha. Muitos outros casos igualmente emocionantes e injustos ficaram de fora, por questão exclusiva de espaço. A maioria destes episódios relatados não é novidade ¿ a força da campanha está no fato de que serão veiculados simultaneamente.

Há várias décadas as organizações do movimento negro e anti-racista vêm lutando e cobrando principalmente do estado brasileiro a adoção de políticas de promoção da igualdade racial. Algumas vêm se concretizando lentamente nos últimos anos, mas ainda há muito a fazer. Ao mesmo tempo, consideramos que uma agenda de promoção da igualdade racial e superação do racismo deve incluir também ações de conscientização, sensibilização e educação voltadas para a denúncia do racismo e do preconceito e a punição destas práticas.

Neste sentido, além da responsabilidade do Estado, o setor privado e as organizações da sociedade civil também são co-responsáveis no avanço desta estratégia anti-racista. Para além das políticas de ação afirmativa, e mesmo para contribuir para o sucesso das mesmas, é necessário trazer a público mais uma vez as idéias centrais de que o racismo é crime, é inaceitável dentro de práticas de convívio social democrático e causa grande prejuízo e sofrimento às suas vítimas.

Em tempos de vida pública degradada, corrupção à solta e escândalos políticos semanais, muitos podem considerar que este não é o tema fundamental da agenda. Entretanto, como marca profunda da sociedade brasileira, que reproduz hierarquias e reduz as oportunidades de tantos milhões de brasileiros, o racismo precisa ser enfrentado como uma questão política da maior importância. Reconhecê-lo e buscar superá-lo é um passo no nosso caminho para lutar por um país com novos padrões de cidadania e convivência social.

ROSANA HERINGER é socióloga e coordenadora de Programas da ActionAid Brasil.