Título: ALERTA: QUEREM FACILITAR A JOGATINA
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 24/06/2006, Opinião, p. 7

Periodicamente surgem tentativas de legalização do jogo de azar e assemelhados. A 13 de junho último, a imprensa informou o resultado da pesquisa sobre a legalização dos bingos. A Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública do Senado concluiu que 48,2% dos entrevistados se manifestaram contra e, apenas, 19,3% foram favoráveis. Os demais eram indiferentes, não sabiam ou não responderam.

O assunto do jogo de azar voltou a ocupar as atenções com a divulgação do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal. Parece-me oportuno relembrar a célebre catilinária de Rui Barbosa contra a jogatina: ¿De todas as desgraças que penetram no homem pela algibeira e arruínam o caráter pela fortuna, o mais grave é, sem dúvida nenhuma, o jogo (...). Permanente como as grandes endemias que devastam a Humanidade, universal como o vício, furtivo como o crime (...) ele zomba da decência, das leis e da polícia (...). Alcança o requinte de suas seduções as alturas mais aristocráticas da inteligência, da riqueza, da autoridade; atira (...) à família corações degenerados pelo contato cotidiano de todas as impurezas, à correspondência do trabalho diurno os náufragos das noites tempestuosas do azar, e, não raro, a violência das indignações furiosas que vêm estuar no recinto dos parlamentos é apenas a ressaca das agitações e dos destroços das longas madrugadas de cassino.¿

Para vencer a crise atual em que vive o Brasil, não é mister oficializar ou ampliar os erros já cometidos nesse campo. Ocorre com certa insistência a divulgação de dados tendenciosos, servindo de argumento para alcançar objetivos desejados que atendam a interesses pessoais ou de grupos, em detrimento do bem comum. Nesse caso, incluam-se as campanhas em favor da legalização do jogo, no Brasil.

Para não ir muito longe, recordo a reunião nacional de órgãos oficiais de turismo, realizada em Brasília, no início de junho de 1979. A maioria dos representantes ¿considerou a existência de cassinos como um trator da maior importância para o desenvolvimento do turismo no país¿ (trecho de um noticiário em um grande jornal de 6 de junho de 1979). Entretanto, o então presidente da Embratur declarou, categoricamente e bem fundamentado, que ¿apenas 30% das pessoas que vão a locais onde existem cassinos participam dos jogos¿. Assim, para justificar a liberação do jogo como pretenso fator para promover o turismo, apela-se para uma inverdade.

Uma posição falsa é afirmar que, na impossibilidade de coibir, que se oficialize a contravenção. Tal proposição prima pela insanidade e gera conclusões altamente nocivas e destruidoras para a sociedade: o crime, enquanto cria raízes profundas, deixaria, diante da Lei, de ser um mal. Uma dedução absurda! O que é custoso, em vez de ser enfrentado e corrigido, é simplesmente riscado de nossos códigos. Esse raciocínio nos levaria a quebrar as tábuas dos Mandamentos da Lei de Deus, pois todos eles são difíceis de ser observados e também constantemente violados. Suponhamos a existência humana em um mundo sem exigências de uma fundamentação moral. Deixemos que nossa inteligência e imaginação nos tracem um retrato bem real de como seria trágico o ambiente em que seríamos forçados a viver. Podemos começar pelos assaltos, tão freqüentes em nossas ruas, pelos estupros, e assim por diante...

Parece ingênuo, para não utilizar afirmação mais contundente, pensar que a assinatura de uma lei que legalize a contravenção dos jogos de azar corrija a corrupção, gerada por somas fabulosas, oriundas da clandestinidade.

No Palácio do Itamaraty, momentos antes do início do jantar oferecido em 1996 à Comissão de Avaliação do Comitê Olímpico Internacional (COI), conversava com um ministro de Estado e esposa. Integrava o grupo um ex-ministro. Veio à baila o projeto de lei aprovando o jogo no país e suas nefastas conseqüências. Eu referi as palavras de um dos maiores industriais do Brasil: ¿Cassino é sinônimo, sim, de dilaceração familiar, destruição profissional, facilitando todos os outros vícios, e interessa, mesmo, ao poderoso crime organizado.¿ E ao ser levantada a possibilidade de permanecer a proibição da jogatina com duas exceções, uma senhora reagiu firmemente contra qualquer liberalização e fez uma pergunta ao interlocutor: ¿Tem conhecimento de algum milionário que seja freqüentador de cassino?¿ Pelo silêncio veio a resposta negativa. Essa verdade revela os danos também financeiros que ameaçam as classes, mesmo abastadas, de nossa sociedade.

Faz-se mister uma constante atenção contra qualquer liberalização de jogos de azar.

Parece-me um contra-senso combater a corrupção e, ao mesmo tempo, facilitar a jogatina.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio.

A proposta de oficializar os jogos de azar prima pela insanidade