Título: Espionagem bancária
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 24/06/2006, O Mundo, p. 33

Casa Branca tem programa para rastrear transações financeiras no mundo sem ordem judicial

Os americanos ficaram sabendo ontem que a invasão de sua privacidade pelo governo vai mais longe do que imaginavam. Em dezembro, eles haviam sido informados de que a Agência de Segurança Nacional (NSA) vinha grampeando telefonemas e mensagens de e-mail de quem desejasse, sem solicitar o devido mandado judicial para isso. Agora, souberam que há cinco anos a Casa Branca também vem rastreando secretamente todas as suas transações bancárias e financeiras em nome do combate ao terrorismo.

O presidente George W. Bush pressionou a Swift (Sociedade para Telecomunicações Interbancárias Mundiais) ¿ um consórcio internacional com sede em Bruxelas que conduz transações financeiras entre 7.800 bancos de todo o mundo ¿ a dar aos EUA acesso irrestrito a todas as transações financeiras no mundo, inclusive dentro do território americano. Para isso, invocou uma legislação de alcance aparentemente restrito a operações feitas por bancos nos EUA: a Lei de Poderes Econômicos Internacionais de Emergência, aprovada logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, e que autoriza ¿investigar, regulamentar ou proibir qualquer transação financeira internacional ligada a uma incomum e extraordinária ameaça¿.

Assim como a revelação anterior, a de ontem também foi feita pelo ¿New York Times¿, numa ampla reportagem. O governo se viu na contingência de admitir a nova espionagem depois de o jornal informar à Casa Branca que não cederia a suas pressões para não publicar a notícia. Diante disso, o Departamento do Tesouro ¿ que coordenava a triagem dos dados destrinchados tanto pela CIA (agência central de inteligência) como pelo FBI (polícia federal) ¿ convocou as principais empresas de comunicação do país na noite de quinta-feira para esvaziar o furo de reportagem que o jornal daria no dia seguinte e, ao mesmo tempo, tentar justificar o rastreamento das movimentações bancárias.

O único caso de sucesso do programa citado pelo jornal é a captura de Riduan Isamuddin, conhecido como Hambali, membro da al-Qaeda que teria idealizado um atentado em Báli, na Indonésia, em 2002.

Governo pressionou jornal a não revelar segredo

Coube a Stuart Levey, subsecretário do Tesouro e chefe de seu Escritório de Terrorismo e Inteligência Financeira, confirmar ¿ e ao mesmo tempo lamentar ¿ ainda na noite de quinta-feira a descoberta do ¿New York Times¿:

¿ Meu trabalho é monitorar o movimento de dinheiro de terroristas e outras ameaças à segurança nacional, e fazer tudo o que puder para interromper esses fluxos de dinheiro. Até hoje não tínhamos falado publicamente sobre esse programa por uma razão óbvia: seu valor era o fato de que os terroristas não sabiam de sua existência. Sua revelação significa uma perda grave para nós.

A descoberta irritou o governo. As reações oscilaram ontem entre a comedida lamentação do secretário do Tesouro, John Snow, a uma irada resposta do vice-presidente Dick Cheney e uma descontrolada manifestação do porta-voz da Casa Branca, Tony Snow.

¿ Não pode haver dúvida alguma de que esse programa é uma arma eficaz na guerra contra o terror. É por isso que a revelação de suas fontes e seus métodos são tão lamentáveis ¿ disse o secretário do Tesouro.

Cheney, por sua vez, insistiu em que se tratava de espionagem ¿totalmente consistente com a autoridade constitucional do presidente¿. Irritado, ele arrematou:

¿ Considero uma ofensa as revelações da mídia.

Numa acalorada entrevista coletiva, o porta-voz da Casa Branca perdeu a paciência. Acusou o ¿New York Times¿ e o ¿Los Angeles Times¿ ¿ os únicos a relatar e questionar a legalidade da espionagem ¿ bem como a CNN, de coletar dados pessoais de quem acessa seus portais na internet. E quando Helen Thomas ¿ jornalista que cobre a Casa Branca há cinco décadas, conhecida por fazer perguntas incômodas ¿ insistiu em saber mais, quando Snow deu o caso por encerrado, o porta-voz a interrompeu bruscamente:

¿ Helen, pare de importunar e me deixe conduzir essa coletiva!

A Casa Branca pressionou diretamente o ¿New York Times¿ a não revelar o segredo mantido há cinco anos. O jornal também foi procurado por parlamentares republicanos com a mesma intenção. No entanto, o editor-executivo, Bill Keller, disse que depois de considerar atentamente os argumentos oficiais, concluiu que o público tinha direito a saber a verdade:

¿ Permanecemos convencidos de que o extraordinário acesso do governo a esse vasto repositório de dados financeiros internacionais, por mais cuidadoso que seja o uso feito deles, é um assunto de interesse público.