Título: Taxista só circula à noite para fugir de blitzes
Autor: Alessandro Soler
Fonte: O Globo, 25/06/2006, Rio, p. 17

Sem carteira assinada há 13 anos, Cidadão I não paga multas ou IPVA, usa produtos piratas e não tem escritura de imóvel

Um taxista, morador de uma grande comunidade pobre da Zona Sul do Rio, casado ¿ não no papel ¿ e pai de três filhos, é a personificação da informalidade que castiga a sociedade fluminense. À margem do Estado em quase tudo na vida, ele pode mesmo ser chamado de Cidadão I (de informal ou, muitas vezes, ilegal). Além de morar na favela e, por isso, viver em situação de informalidade fundiária, sem título de propriedade ou pagamento de IPTU, ele não tem a carteira de trabalho assinada há 13 anos, desde que deixou de ser segurança privado. Hoje, o táxi com que ganha o sustento da família só circula à noite, a fim de evitar a fiscalização, já que há mais de dois anos acumula multas e IPVA não pagos.

Em casa, o Cidadão I tem instalações clandestinas de luz e TV a cabo, o que é crime. Além disso, ele e a família consomem freqüentemente produtos piratas, justificando a opção com os baixos rendimentos.

`O poder público me dá o quê? Somente dificuldades¿

Ao ser perguntado por que chegou ao extremo da informalidade, ele responde:

¿ A necessidade. Ganho pouco, ano passado tive uma forte depressão e isso me fez perder ainda mais o controle das coisas. Deixei de pagar as multas, o IPVA, fiquei com o carro todo irregular, e agora não sei como sair dessa situação. O poder público me dá o quê? Somente dificuldades. Eu tento regularizar minha situação na SMTU, mas não consigo, eles criam uma burocracia imensa, pedem que eu contrate um contador para me ajudar, não têm meios de parcelar as dívidas como eu preciso. Sem falar que a prefeitura alimenta essa indústria de multas, espalhando radares pela cidade sem dar nada em troca. E nas ruas essa buraqueira...

Taxista recente ¿ e sem a própria autonomia ¿ ele paga R$1.800 mensalmente à dona do carro para poder dirigi-lo:

¿ Entre pagar as multas e comprar comida para meus filhos, fico com a segunda opção. Entre dar dinheiro para as grandes empresas e comprar CDs, tênis, pilhas, jogos eletrônicos para minhas filhas no camelô, o que acha que eu vou escolher? Compro até rádios, aparelhos eletrônicos. O preço é um décimo do normal. A indústria podia cobrar mais barato também.

O discurso é politizado. Mas ele reconhece ignorar as implicações da pirataria com o crime organizado internacional.

¿ Nunca parei para pensar nisso. Mas máfia existe em toda parte. No Congresso, no empresariado, na classe alta. Acho que o combate à pirataria é errado da forma como é feito. Os guardas municipais só sabem bater no camelô, coitado. Na maioria das vezes o cara é um trabalhador desempregado. Em vez disso, deveriam ir atrás dos peixes grandes ¿ sugere.

Jogos piratas comprados a R$3 em camelôs

A pirataria de serviços como luz e TV a cabo, contudo, ele explica sem convicção.

¿ Estou tentando regularizar minha situação na Light, mas é difícil. A tarifa é muito alta, não vou poder ter o mesmo nível de consumo. Lá onde eu moro, todo mundo tem TV pirata. Não sou exceção.

As duas filhas do Cidadão I, de 8 e 6 anos, ganharam do pai recentemente um videogame. Comprado a prazo numa loja de departamentos, o aparelho é abastecido com jogos piratas, adquiridos a R$3 cada no camelô:

¿ Elas pedem muitas coisas, como todas as crianças. Só meu filhinho menor, de 1 ano, ainda não pede nada. Mas dói pensar que não tenho condições de dar a eles tudo que merecem. Só a educação eles vão ter de graça, e ainda assim de má qualidade. Minhas filhas estudam no mesmo colégio em que eu estudei, um dos únicos públicos perto da minha casa. Na minha época tinha disciplina, ficávamos muitas horas na aula. Hoje vejo que não cobram nada delas. Tudo piorou.

As críticas ao Estado não se restringem à educação deficiente. O Cidadão I condena a corrupção policial. Ignora, mais uma vez, seu papel no ciclo da corrupção, uma vez que conta pagar propinas freqüentemente a PMs quando parado em blitzes:

¿ No mês passado eu voltava de Bangu, aonde tinha ido pagar as diárias à dona do táxi, quando fui parado numa blitz. Eu nem acreditei: o PM chegou a me mostrar a fatura de R$400 do cartão de crédito dele e disse que nós, os irregulares, é que teríamos que pagar. Eu estava só com R$30, era tudo que tinha me restado depois de deixar o dinheiro com a dona do táxi. Pedi a ele para deixar por R$20, afinal eu tinha que comprar alguma comida para minha família. Ele me pressionou muito. Cheguei a chorar, mas não adiantou.

O Cidadão I considera dar ao Estado até mais do que recebe. E diz não ter esperança de que as filhas vejam uma sociedade melhor.

¿ Falam em direitos e deveres, mas o cidadão parece ter só deveres. Ninguém se sente estimulado a seguir regras numa sociedade tão corrupta e tão errada. É um verdadeiro salve-se quem puder mesmo ¿ diz, para depois repetir uma das frases que mais usou durante a entrevista. ¿ Eu não sou exceção.