Título: CAMINHO PERIGOSO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 30/06/2006, O País, p. 4
O presidente Lula, muito entusiasmado com os índices de apoio que tem nas camadas mais pobres do eleitorado, começa a entrar por um caminho perigoso, que é o de confrontar ricos e pobres, se colocar como protetor dos pobres e fazendo críticas às elites brancas perversas, como diria seu mais novo aliado político, o governador de São Paulo, Cláudio Lembo, do PFL. Os dois, aliás, têm o mesmo calcanhar de Aquiles para criticar as elites, da qual sempre fizeram parte, Lula como operário especializado do ABC, Lembo como assessor do presidente do banco Itaú, Olavo Setúbal, que o levou para a vida pública. Essa exacerbação da disputa entre ricos e pobres pode até render votos para Lula, mas é uma atitude perigosa, pois provoca um clima político muito acirrado no país, que vai desembocar numa campanha eleitoral mais agressiva do que já está sendo previsto.
A meta de atingir 11 milhões de famílias com o Bolsa Família, prevista para o fim do ano, foi antecipada para este mês, num claro esforço de ampliar os potenciais eleitores do governo na próxima eleição presidencial. Nada menos do que 1,8 milhão de famílias foram cadastradas no último mês, o que exigiu uma mobilização espetacular da máquina burocrática governista.
Lula ainda exortou os responsáveis pelo programa para que tentassem cadastrar mais famílias até o fim do ano, e o ministro Patrus Ananias, que transformou esse programa em uma máquina de fazer votos, ainda defendeu a reeleição de Lula, num claro desrespeito às leis eleitorais. Tudo porque tratar com pobre ¿é muito prazeroso¿, segundo nosso presidente, porque os pobres não têm dinheiro para organizar protestos, e se contentam com pouco.
Esse discurso do presidente Lula pode ser atribuído tanto à embriaguez da popularidade em alta, quanto a uma prepotência que nasce da certeza de que conseguiu dar a volta por cima das crises em que seu governo se viu envolvido no último ano.
Experiente manipulador político e de sentimentos, desde os tempos de líder sindical, não há dúvida que Lula se safou das acusações contra ele por seus próprios méritos políticos, esquivando-se de culpas e livrando-se dos assessores mais diretamente envolvidos nos atos de corrupção. Num tempo em que esperteza é confundida com competência política, isso tem lá seu valor.
Ao mesmo tempo, acelerou os programas assistencialistas que o aproximaram do eleitorado de baixa renda, e dobrou sua aposta no poder do salário-mínimo e do real valorizado para a criação de um clima de euforia entre esse grupo de eleitores. Deu certo.
O programa Bolsa Família se transformou num dos maiores instrumentos eleitorais que o governo tem, e não é impedido pela legislação eleitoral em vigor, nem criticado pela oposição, que teme ser acusada de querer acabar com ele. Outro sinal dessa ¿luta de classes¿ permanente a que parece estar dedicado o governo ou, como define o ministro Tarso Genro, a ¿plebeização¿ da política, é a saída do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a seis meses do final do governo.
Considerado integrante do ¿primeiro time¿ do ministério, sua desistência só se justifica pela necessidade de marcar uma posição de protesto. Além dos vários problemas que atingem o agronegócio, que passa por crises sucessivas há pelo menos dois anos, há questões políticas graves em jogo.
Além de ter deixado sem efeito a legislação que proibia que terras invadidas fossem utilizadas no programa de reforma agrária, uma medida tomada no governo de Fernando Henrique que serviu para conter o ímpeto do MST, o governo Lula está propenso a mudar a legislação que define o que seja propriedade produtiva, por pressão dos movimentos dos sem-terra.
Essas são ameaças concretas à propriedade e ao agronegócio que, embora seja um dos principais responsáveis pelos recordes das exportações brasileiras, não encontra respaldo neste governo no embate contra os que defendem que a prioridade deve ser a agricultura familiar.
Não é a primeira vez que esse embate se trava. Campanhola, primeiro presidente da Embrapa, não foi nomeado por Roberto Rodrigues, e sim pelo então ministro José Graziano, do Fome Zero. Além do aparelhamento do órgão, com a participação em sindicatos valendo pontos para as promoções e nomeações, o novo presidente centrou sua atenção na ¿agricultura familiar e no combate à exclusão social no campo¿.
O ministro Roberto Rodrigues vinha defendendo dentro do governo que a agricultura empresarial, que é a grande responsável pelos recordes de exportação, não pode ser excluída das preocupações do governo.
Ele vê nessa separação entre agricultura empresarial e a familiar um preconceito político que não tem razão de existir, já que há espaço para todos na política agrícola brasileira. Rodrigues ganhou a primeira disputa e conseguiu ¿desaparelhar¿ a Embrapa, colocando-a novamente no rumo da pesquisa para aumento da produtividade no campo, o que só beneficia as exportações brasileiras. Mas estava novamente perdendo as batalhas conceituais dentro do governo.
Sem o apoio de uma base política estável, montada e desmontada pelo mensalão, e baseando-se apenas na sua habilidade de se comunicar com o eleitorado mais pobre, o governo Lula vai se movendo lentamente na direção de um populismo de esquerda que não combina com a política econômica que ainda prevalece, e esse é um péssimo sinal para um eventual segundo mandato.