Título: FOGO AMIGO ATINGE BUSH
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Fonte: O Globo, 30/06/2006, O Mundo, p. 30

Suprema Corte americana determina que tribunais militares de Guantánamo são ilegais

Sob intensa pressão para fechar a prisão da base naval de Guantánamo, em Cuba, o presidente George W. Bush viu ontem sua guerra contra o terrorismo sofrer um novo e duro revés. A Suprema Corte dos Estados Unidos concluiu que ele excedeu seus poderes como presidente e violou as Convenções de Genebra e as leis americanas ao instituir tribunais militares de exceção para julgar combatentes inimigos. Para analistas, a medida representa o mais significativo golpe até o momento nos esforços do governo em afirmar que os ataques de 11 de Setembro e a guerra contra terroristas justificam uma das maiores expansões de poder presidencial da história americana.

Por cinco votos a três, a corte acolheu o recurso do iemenita Salim Ahmed Hamdan, ex-motorista de Osama bin Laden, de que os tribunais de Guantánamo são ilegais. A Suprema Corte, porém, não ordenou o fim da prisão, onde estão detidos por tempo indefinido cerca de 450 suspeitos de terror, numa espécie de limbo legal.

"Concluímos que a comissão militar formada para processar Hamdan carece de poder para atuar porque sua estrutura viola o Código Uniforme de Justiça Militar e as Convenções de Genebra", escreveu o juiz John Paul Stevens no caso que ficou conhecido como Hamdan versus Rumsfeld.

- Tudo o que queremos é um julgamento justo - comemorou o subcomandante Charles Swift, advogados de Hamdan.

Bush disse que iria respeitar a decisão, mas que não deixaria de proteger os americanos:

- A sentença, como eu a entendo, não resultará em colocar assassinos nas ruas - disse o presidente, acrescentando que trabalhará com o Congresso para determinar se os tribunais militares serão ou não um caminho para julgar os detidos.

Decisão não implica fim de prisão

Nos últimos meses, o presidente manifestou o desejo de fechar Guantánamo, mas indicou que a decisão dependia da sentença da Suprema Corte. A Casa Branca, no entanto, deixou claro ontem que o fim da prisão não está próximo:

- Isto não significa o fechamento de Guantánamo - enfatizou o porta-voz Tony Snow.

Mas a sentença tem o efeito de frear os esforços do governo em garantir amplos poderes presidenciais de tempos de guerra e traz implicações nada bem-vindas para ele em questões de igual ou maior peso.

A decisão reforça justificativas dos defensores do fechamento de Guantánamo. Para Stevens, as cortes não foram autorizadas pelo Congresso e fracassaram numa das mais fundamentais proteções sob as regras militares americanas: o direito a ter um defensor presente nos procedimentos.

O iemenita é um dos dez prisioneiros contra os quais o governo americano apresentou queixas nas cortes militares especiais. Nelas, o Pentágono designa militares que atuam como juízes e advogados de defesa, e só permite recorrer da sentença num tribunal americano, sem a possibilidade de apelo à Suprema Corte.

Além de Stevens, votaram a favor de Hamdan David H. Souter, Ruth Bader Ginsburg, Stephen Breyer e Anthony M. Kennedy. Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel J. Alito Jr. foram contra. O presidente da Suprema Corte, John Roberts Jr., não votou porque havia se manifestado a favor do governo antes num tribunal de recursos.

O Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU elogiou a decisão, afirmando que "parece justificar a necessidade de vigilância na proteção a direitos humanos", enquanto o secretário-geral do Conselho da Europa, Terry Davis, a classificou de "uma vitória da justiça contra o erro e a hipocrisia".

De acordo com a defesa de Hamdan, o réu poderá ser julgado num tribunal federal ou numa corte marcial. Outra possibilidade para resolver a questão, indicam parlamentares, seria a aprovação de uma lei específica autorizando tribunais especiais para os detidos em Guantánamo.

Prisão isola Estados Unidos

A decisão da Suprema Corte dos EUA contra os tribunais de exceção de Guantánamo deve se transformar em munição legal na pressão internacional sobre o presidente George W. Bush para o fechamento da prisão. Uma pressão que só fez crescer desde que três prisioneiros - dois sauditas e um iemenita - foram encontrados mortos em suas celas, no dia 10 passado, após se enforcarem com lençóis e roupas, e que de certa forma isolou o presidente no cenário internacional.

Os suicídios chamaram a atenção para os cerca de 450 presos em Guantánamo, parte deles detidos desde 2002, quando a base começou a receber pessoas capturadas na guerra do Afeganistão e suspeitas de terrorismo. Presos por tempo indeterminado, até o início deste ano sequer tinham suas identidades reveladas.

Um mês antes dos suicídios, uma rebelião de dez prisioneiros coincidiu com a divulgação de um relatório da Comissão contra a Tortura das Nações Unidas condenando a existência da base, onde greves de fome em protestos são freqüentes.

Os suicídios levaram mesmo aliados, como Reino Unido e Alemanha, a juntarem-se aos apelos de organizações em defesa dos direitos humanos pelo fechamento da prisão.

Na semana passada, ao participar de uma reunião com líderes da UE em Viena, um irritado Bush foi duramente pressionado a dar esclarecimentos sobre sua guerra ao terror em temas como Guantánamo e supostos vôos secretos da CIA, que teria transportado presos clandestinamente. Na ocasião, o presidente americano disse pretender fechar a prisão, embora não tenha estabelecido um prazo, enviando parte dos prisioneiros de volta a seus países e julgando outros nos EUA.