Título: EXCESSOS DA IMAGINAÇÃO AUTORITÁRIA
Autor: Demétrio Magnoli
Fonte: O Globo, 02/07/2006, Opinião, p. 7

No alto da página de dedicatórias de ¿Desafios do Brasil na era dos gigantes¿ (Rio de Janeiro, Contraponto, 2006), de Samuel Pinheiro Guimarães, encontram-se os nomes do presidente Lula e do chanceler Celso Amorim, os responsáveis pela nomeação do autor para a secretaria-geral do Itamaraty. As referências históricas desse tipo de prática são os artistas do Renascimento, que dedicavam suas obras aos mecenas, e a URSS de Stalin, na qual intelectuais prestavam homenagem ao Guia Genial dos Povos.

O ato inicial de negação da modernidade sugere uma comportada narrativa oficialista. No lugar disso, o que vem depois é a exposição da alma escondida de uma política externa que, felizmente, ainda teme se desvencilhar por completo da tradição de Rio Branco. Ao longo de 455 páginas, Samuel Pinheiro oferece um discurso dirigido aos irmãos de fé no qual delineia um programa ultranacionalista de construção do Brasil Potência.

A ¿elite que governa esse país há 500 anos¿, na caricatura recorrente dos discursos de Lula, alcança a condição de paradigma teórico no pensamento do secretário-geral. Da Colônia à Nova República, a história nacional seria uma sucessão infindável de maldades cometidas pela ¿elite branca¿ contra as massas pobres, ¿negras e mestiças¿. A narrativa, apesar das aparências superficiais, não se filia ao pensamento de esquerda pois não acredita na força criativa das lutas sociais. A tal elite, com o auxílio de aparatos ideológicos como a mídia e as igrejas, incorpora ao seu campo político os imigrantes, classes médias e trabalhadores organizados. No lugar de conflito social, o que existe é opressão racial.

Samuel Pinheiro não admite meios-tons: ¿O destino brasileiro será de grandeza ou caos.¿ O caminho para a redenção se encontra numa reação à ¿concentração de poder mundial¿, pela via da construção de um Estado forte que dirige o desenvolvimento nacional nos campos da economia, da tecnologia, da política e da cultura. As estratégias redentoras se baseiam na associação entre o Estado e grandes empresas nacionais, na orientação nacionalista dos meios de comunicação e do sistema educacional e na edificação de um poderio militar capaz de enfrentar ¿ameaças globais¿. Os modelos ocultos abrangem o Japão Meiji, a Itália de Mussolini e a China atual. O modelo explícito é o Brasil do general Ernesto Geisel. Não é fortuito que ocasionais saudações à democracia apareçam entremeadas com iracundas condenações da ¿democracia formal¿.

Que ninguém procure consistência teórica: os conceitos oscilam ao sabor das conveniências argumentativas. O sistema internacional, definido como ¿condomínio¿ de potências liderado pelos EUA num ponto, apresenta-se conflitivo e ¿crescentemente multipolar¿ em outro. Contudo, as ¿ameaças¿ principais ao Brasil são, sempre, a ação das empresas multinacionais e a ¿hegemonia¿ americana, que se exerceria por meio das instituições políticas e econômicas internacionais e dos regimes multilaterais de controle de armamentos. O Brasil Potência desenhado pelo autor cumpriria seu ¿destino¿ de grandeza liderando um bloco político sul-americano, representando-o no Conselho de Segurança (CS) da ONU.

Na sua declaração de método, Samuel Pinheiro proclama o primado absoluto da política. Munido dessa chave mágica, ele submete as realidades à sua vontade ¿ ou melhor, à vontade suprema de um Estado brasileiro que tudo pode. A unidade política sul-americana será alcançada por meio de concessões comerciais e investimentos brasileiros. A Argentina renunciará à sua visão de mundo para adotar a do Brasil Potência. No fim do arco-íris, o Brasil será guindado ao Conselho de Segurança pelo desejo unânime da América do Sul...

Os cínicos acharão graça, mas nem tudo é divertido. Samuel Pinheiro interpreta a ¿cláusula democrática¿ do Mercosul e a adesão brasileira ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) como expressões de uma rendição do país aos desejos de Washington, atribui a criação de reservas indígenas em áreas ricas em minérios às maléficas pressões estrangeiras e sugere que a proteção dos direitos humanos é uma ¿ação tática das grandes potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos¿.

No Itamaraty, o secretário-geral se notabilizou por, encarnando a persona de um mestre-escola, conduzir ¿sabatinas orais¿ com seus subordinados diplomatas. Em seu livro, ele trata os leitores como platéia de deferentes aprendizes e, desafiando as normas elementares do intercâmbio intelectual, esparge incontáveis afirmações conclusivas sobre toda a gama de assuntos sem jamais inserir uma única referência bibliográfica específica destinada a corroborar as suas ¿verdades¿.

A figura do atual secretário-geral é fruto de um acaso histórico. No ocaso do segundo mandato de FHC, ele concedeu uma rumorosa entrevista com críticas à Alca. Reagindo injustificadamente, o Itamaraty impôs a ¿lei da mordaça¿ ao corpo diplomático. Isso foi suficiente para transformar, aos olhos de Lula e da opinião pública de esquerda, o então obscuro diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais em profeta de uma nova doutrina diplomática.

O livro do profeta seria irrelevante se ele não tivesse sido galgado à posição de número 2 do Itamaraty. Nas atuais circunstâncias, o lançamento editorial cumpre o serviço público de soterrar a hipótese de uma candidatura do secretário-geral à chancelaria.

DEMÉTRIO MAGNOLI é doutor em Geografia Humana pela USP e editor de Mundo ¿ Geografia e Política Internacional.

N. da R.: Verissimo e João Ubaldo Ribeiro escrevem no caderno Copa 2006.