Título: 'DESIGUALDADE EXIGE POLÍTICAS PÚBLICAS ESPECÍFICAS'
Autor: Demétrio Weber
Fonte: O Globo, 05/07/2006, O País, p. 13

O manifesto em favor da lei de cotas e do Estatuto de Igualdade Racial:

"A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será alterada sem a aplicação de políticas públicas específicas. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre os cidadãos. A população negra foi excluída no acesso à terra, à instrução e ao mercado de trabalho para competir com brancos numa nova realidade econômica. Enquanto se dizia que todos eram iguais na letra da lei, políticas de incentivo e apoio, que hoje podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração de europeus para o Brasil.

"Esse racismo estatal foi intensificado no século XX. Dados oficiais do Ipea em 2001 resumem o padrão de desigualdade racial: por quatro gerações pretos e pardos têm menos escolaridade, salário, saúde, emprego e moradia que brancos e asiáticos. Estudos desenvolvidos por outros organismos estatais demonstram que a ascensão social e econômica no país passa necessariamente pelo acesso ao ensino superior.

"A constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas das universidades impulsionou a luta nacional pelas cotas, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em novembro de 1995, encampada por ampla frente de solidariedade entre acadêmicos negros e brancos, coletivos de estudantes negros, pré-vestibulares para afro-descendentes e pobres e movimentos negros, estudantes, líderes indígenas, jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas - boa parte dos quais subscreve o documento. A justiça e o imperativo moral da causa encontraram ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas públicas concretas: criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, de 1995; primeiras ações afirmativas dos ministérios, em 2001; criação da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial, em 2003; e os atuais projetos de lei que estabelecem cotas para estudantes negros da escola pública nas universidades federais brasileiras e o Estatuto da Igualdade Racial.

"A Lei de Cotas é resposta coerente e responsável do Estado aos instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969, e o Plano de Ação de Durban, em 2001. Ações para minorias étnicas e raciais já se efetivam em países semelhantes ao Brasil. (...)

"Nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas ainda na época do apartheid era bem maior que nas nossas universidades públicas. A porcentagem de docentes nas universidades públicas não chega a 1%, e os negros conformam 45,6% da população. Se os deputados e senadores não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E estaremos condenando mais uma geração de secundaristas negros a ficar fora das universidades. Segundo estudos do Ipea, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje caso nenhuma política seja adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram sua função republicana e social, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica.

"Nos últimos quatro anos, mais de 30 instituições de ensino superior públicas implementaram cotas. Outras 15 estão prestes a adotar políticas semelhantes. O rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao do sistema universal. O dado é importante porque desmonta um preconceito difundido de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica.

"Outro argumento usado contra as políticas de cotas é que haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito distante desse panorama alarmista, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das cotas têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Nesse sentido, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário. (...)

"Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis a serem votadas o PL 73/99, que reserva vagas na graduação, é uma medida ainda tímida: garantirá uma média nacional mínima de 22,5% de vagas nas universidades públicas para um grupo humano que representa 45,6% da população nacional. É preciso, porém, ter clareza do que significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação no Brasil. O número de ingressos nas universidades federais em 2004 foi de 123.000 estudantes, enquanto o total de ingressos em todas as universidades foi de 1.304.000 estudantes. Se já existissem cotas em todas as universidades federais para este ano, os estudantes negros contariam com uma reserva de 27.675 vagas (22,5% de 123.000 vagas). Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total de ingressos no ensino superior brasileiro. Devemos concluir que a desigualdade racial continuará sendo a marca do nosso universo acadêmico durante décadas, mesmo com a implementação do PL 73/99. Sem as cotas, porém, já teremos que começar a calcular em séculos a perspectiva de combate ao nosso racismo universitário. (...)

"Se a Lei de Cotas visa a nivelar o acesso às vagas de ingresso nas universidades públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade Racial complementa esse movimento por justiça. Garante o acesso mínimo dos negros aos cargos públicos e assegura um mínimo de igualdade racial no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de 1891, no momento inicial da construção da República no Brasil. Foi sua ausência que aprofundou o fosso da desigualdade racial e da impunidade do racismo contra a população negra ao longo de todo o século XX. Por outro lado, o Estatuto transforma em ação concreta os valores de igualdade plasmados na Constituição de 1988, claramente pró-ativa na sua afirmação de que é necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada. Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o ciclo de desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história republicana.

"Documento contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial foi enviado recentemente aos parlamentares por acadêmicos de instituições de elite. Ao mesmo tempo que rejeitam as duas leis, não apresentam proposta alternativa concreta de inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade multiétnica e multirracial com história recente de escravismo e genocídio, parece reeditar o imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado. Essa postergação consciente não é convincente. Ou adotamos cotas e implementamos o Estatuto ou seremos coniventes com a perpetuação da nossa desigualdade étnica e racial.

"Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é um princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas, baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar essa meta.

"Conclamamos, portanto, os nossos ilustres congressistas a que aprovem, com a máxima urgência, a Lei de Cotas (PL73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000)".

O documento é assinado por 421 pessoas, além de outras 152 que apóiam, entre eles: Alexandre do Nascimento, coordenador do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC); Frei David Raimundo dos Santos, diretor da Educafro; José Jorge de Carvalho, professor de antropologia e autor da proposta do sistema de cotas da UnB; Abdias do Nascimento, ativista político, ex-senador, do Ipeafro; André Borges, vice-presidente do Instituto Palmares de Direitos Humanos; Antonio Grassi, ator e presidente da Funarte; Augusto Boal, ator e diretor teatral; Cândido Grzybowski, diretor do Ibase; Carla Ramos, socióloga; Giuseppe Cocco, cientista político; Eduardo Viveiros de Castro, professor; Flávio Jorge Rodrigues da Silva, diretor da Fundação Perseu Abramo; Haroldo Costa, ator, membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio; Ivair Augusto dos Santos, assessor da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça; Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ; e Ivanir Alves dos Santos, coordenador do Centro de Articulação de Populações Marginais.

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