Título: MARCHA DA INSENSATEZ
Autor: JOSIER VILAR
Fonte: O Globo, 06/07/2006, Opinião, p. 7

Boas idéias acompanhadas de execução eficaz são tão carentes no Brasil que, quando surgem, deveríamos fazer um mutirão de boa vontade para preservá-las. Lamentavelmente, boas iniciativas têm sido soterradas por diversas razões, inclusive a total ausência de bom senso. As Organizações Sociais de Saúde (OSs) são um notório exemplo de uma iniciativa promissora que vem sendo bombardeada pela insensatez ou falta de informações corretas.

É tese aceita em todo o mundo que ao Estado cabe o papel regulador e financiador de programas sociais. Nunca deveria estar envolvido com a gestão. Recentemente, numa iniciativa inovadora, o Estado de São Paulo delegou a algumas OSs, entidades privadas sem fins lucrativos, a gestão de hospitais públicos. Esse programa começou a ser implantado em 1998, sob o amparo da Lei Complementar estadual 846/98, que estabelece parâmetros seguros para parcerias entre o estado e entidades filantrópicas nas áreas de saúde e cultura.

O sucesso é inquestionável. Nos últimos oito anos, 20 unidades hospitalares e centros de saúde da rede pública paulista passaram a ser administrados pelo novo modelo, com resultados excepcionais: custos de internação 25% menores e produtividade 42% maior em relação ao restante da rede - o que significa garantia de maior acesso da população aos serviços de saúde - graças a uma gestão profissional eficiente. Segundo a Secretaria da Saúde do Estado, o índice de satisfação dos pacientes nas unidades administradas pelas OSs - que por força da lei só podem atender a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), beneficiando diretamente a parcela mais carente da população - é de 95%.

Com estatísticas tão promissoras, em contraste com a realidade degradante da maior parte da rede pública brasileira, seria natural que o modelo fosse copiado no restante do país. Chega-nos notícia de que os governos de Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina, demonstrando bom senso, passaram a instituir parcerias semelhantes. O mesmo caminho tomou a prefeitura de São Paulo, apostando numa gestão mais ágil nos hospitais municipais, ampliando o acesso da população de baixa renda da maior cidade do país a serviços de melhor qualidade. Contudo, a insensatez e muito provavelmente a falta de informação encarregaram-se de impor uma barreira à transformação em curso. A Vara Cível de São Paulo, atendendo a um pedido do Ministério Público Federal - que, ao que se saiba, não avaliou resultados - proibiu a prefeitura paulistana de firmar novas parcerias com as OSs. Aparentemente, o que se teme é que o modelo possa "conduzir à privatização dos serviços públicos de São Paulo".

Confundiu-se, assim, garantia de acesso público com gestão privatizada. O acesso continuará, por força da lei, a ser público e financiado exclusivamente pelo SUS. A gestão é que é privada e focada em resultados. Eficiência é o que pode resultar dessa parceria. É disso que o Estado brasileiro necessita para reduzir seus custos, que absorvem hoje quase 40% do PIB, um dos maiores gastos públicos do mundo.

Urge que o MP federal e a Justiça paulista revejam suas decisões com uma análise mais aprofundada dos aspectos técnicos e legais. Veriam que o modelo está longe de caracterizar privatização do acesso aos serviços de saúde. As OSs tratam exclusivamente de boas práticas de gestão e governança corporativa pública.

A Lei 846 determina que as OSs sejam criteriosamente pré-selecionadas e sigam metas qualitativas e quantitativas fixadas pelo poder público, apresentando relatórios regulares sobre os resultados. Trabalham sob contratos de gestão e estrito controle da administração direta, e têm seus resultados submetidos a um colegiado formado por integrantes da Secretaria Municipal de Saúde, do Conselho Municipal e da Câmara Municipal. Suas prestações de contas são analisadas pelo Tribunal de Contas do município. Esses parâmetros são a garantia de que o modelo estará a salvo de desvirtuamento.

A iniciativa adotada no Estado de São Paulo se mostrou um raro caso de excelência na gestão dos recursos públicos, e o impedimento de sua ampliação no município de São Paulo será um retrocesso. Que prevaleça o bom senso e o Rio de Janeiro possa também acompanhar essa experiência pioneira e vitoriosa de boas práticas de gestão dos recursos públicos.

JOSIER VILAR é presidente em exercício do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Casas de Saúde do Município do Rio de Janeiro (Sindhrio).