Título: ÁGUA: TRIBUTAÇÃO OCULTA E ILEGAL
Autor: RICARDO ALMEIDA RIBEIRO DA SILVA
Fonte: O Globo, 09/07/2006, Opinião, p. 7

Os jornais brasileiros têm noticiado a escalada do preço do fornecimento de água encanada no Brasil. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a tarifa per capita (R$109) é a mais cara de todas as 130 cidades pesquisadas pela revista ¿The Economist¿, em estudo publicado no ano passado, batendo inclusive a cidade de Londres (R$48).

São variados os fatores que levam a este exagero. O primeiro é a falta de um controle público eficiente dos preços cobrados pelas empresas estatais e pelas concessionárias privadas.

O segundo decorre de abusos pontuais, tais como distorção da leitura de hidrômetros, cobranças indevidas ou exageradas, cobranças por serviços de esgoto não prestados, além da famosa incorporação do ICMS (18%) ao valor da tarifa de água (como ocorreu no Estado do Rio de Janeiro em 2004).

Contudo, o mais escondido de todos os mecanismos de majoração do preço do metro cúbico de água é a ¿progressividade¿ por ¿categorias de usuários¿ (residencial, comercial e industrial) e por ¿faixas de consumo¿. Concebido na década de 70, durante o período militar, consistia na cobrança de um valor adicional de determinadas categorias de consumidores com o objetivo de financiar o ¿grande plano nacional de saneamento¿ (Planasa). Este mecanismo foi mesclado nos estados pelas empresas estatais, que passaram a cobrar adicionais também por ¿faixas de consumo¿, de modo que o valor da tarifa básica de água era majorado por um multiplicador progressivo, cada vez que o consumo atingia uma nova faixa, agravando-se ainda mais para determinadas categorias de usuários.

A injustiça do sistema é flagrante. Primeiro porque pressupõe que consumidores que usam mais de 15 ou 20 metros cúbicos de água por dia têm mais capacidade contributiva. Ora, qualquer residência familiar, com alguns dependentes (crianças ou idosos), usa mais do que 15 m³ por dia. E quanto maior a família, mais cara fica a água.

A mesma iniqüidade atinge o comércio e a indústria. Geralmente, quem usa a água como insumo de sua atividade econômica é severamente punido na conta do fim do mês, pois não tem poços artesianos ¿ como as indústrias de bebidas e do setor químico ¿ e em geral desempenha atividade econômica de baixo valor agregado. É o caso das lanchonetes, restaurantes, escolas e clubes recreativos, que pagam pelo metro cúbico de água até oito vezes mais do que, por exemplo, uma joalheria ou um banco.

É fácil inferir que o sistema atual subverte e afronta o próprio princípio da capacidade contributiva, invocado como fundamento para justificar a cobrança de adicionais progressivos à tarifa de água. Ademais, não há neste sistema progressivo qualquer objetivo de racionar a água ¿ o que seria indesejável, pois grande parte do país (excluindo estados em que há deficiências sazonais no fornecimento de água, como o Distrito Federal) tem abundância de água e as empresas de saneamento precisam fornecê-la para sobreviver e ampliar investimentos em favor da população desatendida.

O último argumento das empresas estatais tem sido afirmar que se trata de ¿subsídio cruzado¿. Ora, se é de fato um subsídio cruzado ele é absurdamente injusto e ilegal, pois fere a lei nacional da política tarifária ¿ art. 13 da Lei nº 8.987/95 ¿ e os princípios constitucionais de isonomia, proporcionalidade e contraprestacionalidade.

Por ser nitidamente um adicional tributário agregado à tarifa (pois é cobrado sem contraprestação específica da empresa ao usuário, e pressupõe ¿ ainda que equivocadamente ¿ maior capacidade contributiva de quem mais usa água), deveria ser instituído por lei, em respeito ao princípio da legalidade tributária (direito fundamental do contribuinte).

Além disso, todo e qualquer subsídio cruzado deve ser vinculado e controlado por fundo orçamentário especial (como o Fust), buscando assegurar legitimidade, transparência e responsabilidade fiscal na sua instituição, arrecadação e destinação. Com isso, veríamos que, computados os subsídios cruzados, a carga tributária brasileira é muito superior aos 38% do PIB.

Por tudo isso é preciso dizer que a ¿tarifa progressiva¿ violenta os consumidores de água e aumenta, de forma oculta e ilegal, o ¿custo Brasil¿.

A oportunidade para mudar o sistema é o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, que propõe um novo marco regulatório para o setor. Do contrário, restará ao Poder Judiciário rechaçar a prática em curso, preservando os direitos dos consumidores e dos contribuintes brasileiros.

RICARDO ALMEIDA RIBEIRO DA SILVA é advogado tributarista.