Título: EM BUSCA DE CURA PARA UMA FERIDA MILENAR
Autor: Florencia Costa
Fonte: O Globo, 09/07/2006, O Mundo, p. 42

Índia enfrenta fantasmas ao tentar criar cotas para castas baixas nas universidades

Areluzente Índia que nasce no século XXI como uma das mais promissoras nações do planeta enfrenta fortíssimas dores do parto. O país se esforça para exibir ao mundo um perfil glamouroso. Mas é impossível esconder as feridas que marcam a sociedade indiana há milênios. Uma delas é o sistema de castas. A Constituição de 1950 aboliu a discriminação e diz que todos os indianos são iguais. Mas, como sempre, na prática uns são muito mais iguais que outros.

Desde maio, as ruas de grandes cidades foram tomadas por estudantes revoltados. Eles reagiam à tentativa do governo do premier Manmohan Singh de corrigir injustiças sociais nos centros de excelência de ensino superior ¿ justamente o celeiro dos famosos cérebros indianos. O governo quer aumentar a presença de indivíduos das chamadas castas inferiores nos institutos de tecnologia, administração e medicina. Escolheu uma fórmula que sempre causa polêmica, em qualquer lugar no mundo: as cotas. Como no Brasil, que instituiu cotas para negros nas universidades. O assunto dividiu a sociedade indiana. Professores, médicos e parte da intelectualidade deram as mãos aos estudantes.

Na década de 1950, o governo já havia instituído uma cota de pouco mais de 20% para os empregos na máquina administrativa. Em 1990 reservou-se mais 27% de vagas no governo para outras camadas de castas baixas. Foi na mesma época em que o país iniciava seu processo de liberalização econômica que culminou com o crescimento de 8% no ano passado. Os universitários tomaram as ruas de Nova Délhi. Alguns chegaram a atear fogo ao próprio corpo. Foi na mesma época em que outro emergente de hoje, a África do Sul, enterrava o apartheid. Em maio, 16 anos depois, o caldeirão explodiu de novo com o anúncio do governo de que reservaria 27% de vagas para essas castas nos privilegiados nichos do ensino superior da elite indiana.

Os estudantes voltaram às ruas. ¿Eu nasci com inteligência, mas a política de reservas quer acabar com ela¿, dizia um dos cartazes. Num ato simbólico, os estudantes de medicina varreram o chão do campus, sugerindo que as cotas os obrigariam a se submeter a um emprego ¿servil¿, geralmente delegado às castas inferiores. A medida vai ser votada pelo Parlamento este ano. Já havia 22,5% de cotas para outras categorias ¿ como as tribos e os indianos que vivem excluídos do sistema de castas, os chamados dalits (oprimidos), conhecidos como intocáveis.

Se o projeto de cotas de 27% para outras castas mais baixas for aprovado, o total de cotas nos nichos de ensino superior chegará 49% a partir do ano que vem. Ao menos uma vitória o governo teve: os empresários indianos, antes hostis, aceitaram reservar vagas de empregos para essas cotas. A Infosys, gigante indiana de tecnologia da informação, vai recrutar 100 engenheiros.

Discriminação é tabu entre a classe média

Típico indiano de classe média de Mumbai, Giridhar Giri, 23 anos, programador de software, fica inflamado ao criticar as cotas.

¿ Está cada vez mais difícil passar num exame para entrar nessas instituições de ensino. Quem não é beneficiado pelas cotas pode acertar mais de 90% das questões e não passar. Além do mais, há o risco de cair o nível de ensino ¿ protesta.

Mas ele não esconde o constrangimento ao falar sobre o maior tabu do país: a discriminação por castas. Como a média dos indianos privilegiados, Giri diz que o ¿apartheid por castas é coisa do passado¿.

Ele é um dos três milhões de graduados por ano na Índia e pretende se unir ao exército de 30 milhões de pós-graduados no país. O fato é que, assim como no Brasil a discriminação contra os negros persiste, na Índia a chaga do preconceito de castas é uma ferida aberta, sem previsão de cicatrizar. O problema é saber a forma mais eficaz de combater o mal.