Título: Os manifestos e a escrava Inês
Autor: JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES
Fonte: O Globo, 14/07/2006, Opinião, p. 7

Nos últimos dias, dois diferentes grupos de intelectuais e ativistas se encontraram com os presidentes do Senado e da Câmara, para entregar dois manifestos sobre o projeto de lei que obriga a adoção de cotas raciais nas universidades federais e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, que também está para ser votado. Um contra, outro a favor.

O título do primeiro era ¿Liberdade, Igualdade, Fraternidade: todos têm direitos iguais na República Democrática¿. A mensagem era curta e precisa: o Brasil desejável é como o sonhado por Martin Luther King, onde as pessoas sejam avaliadas pela força de seu caráter e não pela cor da sua pele. Para isso, não podemos permitir que leis raciais sejam instituídas no Brasil. Em todo lugar do mundo onde isso aconteceu se abriram as portas do inferno. A África do Sul é o exemplo mais recente. A Alemanha nazista é o mais eloqüente. O Estatuto da Igualdade Racial vai proceder à divisão racial dos brasileiros. Nos documentos vai estar registrada a raça/cor de todo mundo. Não é ainda uma estrela amarela estampada no peito, pois sempre se pode escondê-los no bolso. Mas quando instados a mostrá-los nos guichês dos serviços públicos ou a uma autoridade, seremos forçados a confessar a nossa raça. E punidos ou privilegiados por isso.

O outro manifesto, intitulado ¿Desigualdade Exige Política Específica¿, é muito maior e deve ter obtido muito mais assinaturas. Não é possível comentar tudo neste pequeno espaço. Chamo apenas a atenção para uma coisa que, em minha opinião, dá o tom da obra. Acusa a Constituição de 1891 de decretar uma igualdade puramente formal entre os cidadãos, como se ela devesse ter sido socialista. Mas não é uma constituição socialista o que desejam: querem uma constituição racista. Acham que a Constituição de 1988 está preparada para dar esse salto, incorporando o Estatuto da Igualdade Racial, que vai dividir os brasileiros em negros e brancos, cada um com direitos e oportunidades diferentes. Talvez tenham razão sobre o estado de nossa constituição. Sistematicamente desrespeitada, com a proliferação das cotas, ela vem sendo preparada para o assalto final. O Estatuto da Igualdade Racial é o Cavalo de Tróia.

E dizer que tudo isso vem sendo feito para acabar com o racismo e reparar ¿grupos historicamente excluídos¿. Mas nada disso faz sentido. Não se acaba com o racismo enquadrando racialmente as pessoas e disseminando a idéia, errada e má, de que a raça ao lado é a culpada das nossas dificuldades. Quanto aos ¿grupos historicamente excluídos¿, nem eu nem a torcida do Flamengo sabemos do que se trata. O que se vê no dia-a-dia é uma população que trabalha duro para dar algum conforto à família e sofre com a incapacidade da economia brasileira de gerar mais crescimento e mais emprego por um tempo mais prolongado. O resto é o que se vê na TV: grupos de militantes barulhentos, mal-educados, intolerantes, capazes de destruir laboratórios e as instalações do próprio Parlamento. É o apreço que têm pelo progresso e pela democracia.

Não sei quem são esses grupos, mas, por dever de ofício, conheço alguma coisa da vida de uma escrava chamada Inês, que viveu na fazenda Pontes de Taboas, em Nova Friburgo, em meados do século XIX. Era uma mulher de coragem. Quando viu o marido sofrendo no tronco, esperou a noite cair para soltá-lo. Fugiram mas logo foram capturados. A maior parte do ódio do feitor recaiu sobre ela. Foi chicoteada e golpeada com um sabre várias vezes, e depois mandada ao trabalho. Como não suportasse ficar em pé, o facínora pôs-se a bater no pescoço e na cabeça dela com uma pedra até cansar. Em seguida, mandou prendê-la no tronco. No outro dia ela estava morta.

Inês vai ser reparada? Não, não vai, pois já morreu. Aliás, se o céu existir, ela já teve a maior das reparações. Só podemos homenageá-la. Uma boa homenagem é não permitir que se use o seu triste destino como desculpa para a criação de novas formas de discriminação e privilégios. Essa não era, certamente, a luta dela. O nosso alcaide também podia mandar erguer uma estátua a Inês. Podia ficar na Praça Tiradentes, ao lado da de D. Pedro I, uns cinco centímetros mais alta, para a homenagem ser maior.

JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).