Título: A vida segregada do brasileiro autista
Autor: Soraya Aggege
Fonte: O Globo, 16/07/2006, O País, p. 18

Sem tratamento, que Estado não cobre, jovens são mantidos presos em casa sob o improvisado cuidado das mães

SÃO PAULO. Rafael, de 25 anos, finge que é passarinho, mas passou a vida trancado. André, 20 anos, reza dias inteiros e grita o tempo todo. Leandro, 29, engole esponjas de aço e cremes de cabelo. João Guilherme, 11, come compulsivamente. Eles se automutilam e agridem até suas mães. Apesar de adultos, serão sempre meninos. Eles têm autismo, transtorno que atinge até 1,8 milhão de brasileiros, segundo estimativas médicas. O GLOBO encontrou vários desses meninos reclusos em quartos vazios, fechados em porões ou amarrados. Nenhum deles recebe tratamento. Autismo ainda não é doença tratada pela rede pública de saúde no Brasil.

¿ Infelizmente, eles são os meninos do porão. Passam a vida escondidos, trancados. Era assim antigamente e hoje em dia também. Temos visto casos inclusive de meninos acorrentados ¿ relata o neuropsiquiatra infantil Raymond Rosenberg, especializado em autismo.

Autismo não é ¿loucura¿, nem ¿retardo mental¿, como o personagem de Tom Cruise descobre no filme ¿Rain man¿. Além disso, raros são como o autista sábio interpretado por Dustin Hoffman. Mas no filme, como na realidade, os autistas não podem ser ¿curados¿. Precisam, no entanto, de tratamento especializado. Quando são internados como doentes mentais ¿ que é como os governos no Brasil têm determinado quando eles entram em crise ¿ saem mais agressivos. Também não são atendidos entre deficientes.

Internação: custo chega a R$5 mil

Muitas vezes os tratamentos incluem internações especiais. Nos locais especializados, o autismo é compreendido como um ¿jeito de ser¿ e os meninos ficam menos agressivos, ganham hábitos mais sociáveis, afirmam especialistas. O custo, no entanto, é alto, inatingível para a maioria dos pais: entre R$1.900 e R$5 mil mensais para mantê-los internados.

Ter em casa um autista sem tratamento é uma experiência que deixa várias mães com doenças mentais e famílias desestruturadas. Além das manias, como repetir em voz alta a mesma frase dias seguidos ou quebrar objetos compulsivamente, eles podem ter ataques de fúria, principalmente quando alguma rotina é contrariada. Por quebra de rotina entendem, por exemplo, um novo CD na estante ou a simples mudança de estação. Foi o que os repórteres constataram ao longo de três semanas de convívio com autistas.

¿ O quadro piora sem tratamento. Primeiro começam a se mutilar, depois passam a agredir os outros. É um transtorno para os pais, que ficam incapacitados para o convívio social e até para o trabalho ¿ diz Rosenberg.

As mães geralmente são o principal elo do autista com o mundo. Talvez por isso elas apanhem mais. Dentes e braços quebrados são conseqüências comuns nessas relações. Muitas vezes não há diferença de sentimento entre um beijo e um tapa no rosto. Para muitas delas, no entanto, eles são ¿anjos¿ que as fazem viver em um outro mundo, onde, simplesmente, as regras são diferentes.

André é um dos 30 meninos autistas pobres que O GLOBO localizou. Onde ele vive, em Hermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo, a reportagem encontrou nove como ele.

¿ André arrebenta nossa casa quase todo dia. Temos que repor tudo, sempre. Aí ele estranha e quebra de novo. Mal sobra para a gente comer. O que ele já me agrediu... Meu marido e os outros filhos não têm paciência e eu os entendo. O menino provoca. Mas André é um amor de criança, uma bênção de Deus. O que ele já me ensinou... É como se ele vivesse em um país estrangeiro e me levasse para lá sempre. Mas ninguém mais consegue entrar ¿ conta Neusa Albertini, de 55 anos.

Maratona por tratamento

Seu filho, André, de 20 anos, tem mania de rezar e também imita cães. Grita o tempo todo.

¿ Tira esse cachorro louco daqui, não agüentamos mais ¿ reclamou uma vizinha de Neusa, porque André saiu no portão de sua casa.

¿ Você me ama? Você me ama? ¿ repete André, dia e noite, aos gritos.

A vizinha não se sensibilizou. Nem a mãe de Neusa aceita mais visitas suas acompanhada do filho. Como milhares de mães, Neusa já cumpriu longas maratonas em busca de tratamento.

¿ Os postos, hospitais, todos dizem a mesma coisa: ¿Ele é seu filho, a senhora é quem tem que cuidar dele. Quem pariu que embale¿. Eu embalo, faço questão até. Mas ele precisa ser tratado para ficar menos agressivo ¿ conta, depois de explicar que uma vez insistiu em um hospital e teve o filho internado como louco, até entrar em coma. Saiu ainda mais agressivo.

Maria Nilza Silva da Penha ensinou o filho João Guilherme, de 11 anos, a fazer carinho. Mas ele também a agride, e se agride, quando entra em surto. A dona de casa não consegue internar o menino, que também sofre de obesidade mórbida ¿ conseqüência da compulsão por comida, desenvolvida com o autismo.

¿ Estou cansada de procurar ajuda ¿ desabafa.

Ali perto, Sueli Silva Souza, de 48 anos, fez uma escolha diferente. Há vários anos cansou de perambular com o filho Rafael, de 25 anos, em busca de ajuda. Ela se mudou com o filho para um subsolo da casa onde vivem o marido e duas filhas.

¿ Ele vegeta, e eu vegeto junto com ele. Nossa relação sempre foi muito boa porque entro no mundo dele. Os outros não conseguem e não têm culpa disso. No autismo não existe comunicação, nem sociedade. Se pudesse dar um tratamento seria bom, mas o custo é muito alto e não vamos mais ser humilhados pedindo ajuda por aí. Assim, vivemos aqui, sem nenhuma vida social ¿ conta Sueli, enquanto Rafael imita um passarinho, de mãos erguidas para os céus. Passa os dias trancado, geralmente com a mãe por perto. A mania de passarinho causou até uma deformação labial em Rafael, que todo o tempo sopra objetos que lembrem uma pena.

¿ Pelo menos temos uma propriedade para guardar o menino. É um jeito de protegê-lo ¿ afirma a mãe.

Sem teto próprio, moradora da Favela da Fortuna, Maria José dos Santos, de 42 anos, tem cuidado especial com o objeto mais caro que tem no barraco: um alto portão de ferro, que garante a reclusão de Reginaldo José Lozano, de 19. Ele não consegue manter hábitos e os transtornos da vida no minúsculo barraco o enlouquecem. Espanca a família e se mutila.

Reginaldo é um dos raros autistas que conseguem falar normalmente e demonstra inteligência. Ele conseguiu explicar à reportagem que não gosta dos ratos que povoam sua casa e que precisa de um quarto fechado só para ele. A mãe de Reginaldo não consegue mais ser racional. Ela explica que dá uma grande quantidade de remédios, mesmo sem receita, para que ele não bata nela. Diz que fecha o portão para que Reginaldo não saia e espanque as pessoas da favela:

¿ Ele depende de mim. E ninguém mais o aceita, além de mim.