Título: AS JÓIAS COLONIAIS QUE A CIDADE NÃO PERDEU
Autor: Jacqueline Costa
Fonte: O Globo, 16/07/2006, Rio, p. 24

Mesmo após reformas urbanísticas, Rio ainda tem pelo menos 31 igrejas e outros imóveis remanescentes do estilo

Por ter sido capital do Brasil durante a Colônia, o Império e parte da República, o Rio de Janeiro guarda uma sedutora variedade de estilos arquitetônicos, do colonial ao modernista, passando pelo neoclássico, eclético e art déco. São pequenas e grandes jóias que testemunham mais de quatro séculos de história. Pelos quatro cantos da cidade, há desde prédios que preservaram as características de sua época até construções que lembram uma verdadeira colcha de retalhos, depois de passarem por reformas que alteraram a feição original. Numa série que começa hoje e que será publicada aos domingos, O GLOBO mostrará um pouco de cada estilo arquitetônico.

Igrejas: fiéis retratos do período colonial

A fase colonial vai desde a fundação do Rio, em 1565, até 1808, quando o Brasil passa à condição de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. As igrejas cariocas são os mais fiéis retratos deste período. Segundo o historiador Milton Teixeira, por ser a mais preservada desta fase, a arquitetura religiosa transformou-se praticamente em sinônimo do estilo colonial. Há desde os exemplos mais singelos e pouco conhecidos aos mais imponentes e famosos, somando pelo menos 31 igrejas remanescentes da época. Muitas foram demolidas por conta de reformas urbanísticas que, aos poucos, deram novos traços à cidade, como a empreendida pelo prefeito Pereira Passos entre 1902 e 1906. Na opinião do arquiteto Alfredo Britto, o pouco que restou no Rio de Janeiro é bastante significativo em se tratando de Brasil.

¿ São Paulo destruiu muito mais e ficou com muito menos exemplares do período colonial. No Rio, a construção da Avenida Central botou abaixo grande parte do casario colonial. Mais tarde, com a abertura da Avenida Presidente Vargas, foi demolida uma das igrejas mais bonitas do Rio: a São Pedro dos Clérigos, a única do período colonial com fachadas curvas ¿ explica Alfredo, professor do curso de arquitetura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e autor do projeto de restauração da antiga Casa da Moeda, hoje Arquivo Nacional.

Nas fachadas, o contraste entre as paredes brancas e as pedras de cantaria pode ser considerado a característica mais forte desta fase. Entre as dezenas de templos coloniais, só há um caso de fachada inteiramente revestida de cantaria, característica marcante do colonial com influência do estilo pombalino: a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, na Rua Primeiro de Março, no Centro.

Passados 441 anos, muitos desses tesouros continuam de pé, alguns em bom estado e outros necessitando de restauração. Ao lado do Paço Imperial, inaugurado em 1743 e que originalmente tinha apenas dois andares, o Outeiro da Glória é um importante testemunho da história colonial do Rio de Janeiro. Apesar das transformações urbanas que a cercam, a igreja ainda domina a paisagem à sua volta. O interior ¿ com seus trabalhos ornamentais em talha no altar-mor, altares da nave, tribunas e coro ¿ representam a transição entre o final do estilo rococó e o neoclássico. A boa notícia é que a igreja passará por uma ampla restauração interna e externa, que inclui obras na cobertura, na fachada, nos muros, nos paramentos, nos altares e nas talhas. Segundo Isis Pagy, gerente de incentivo à cultura do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), serão investidos R$1,52 milhão, sendo R$991 mil patrocinados pelo banco.

¿ Até novembro do ano passado, o banco só patrocinava obras em construções do período colonial. A partir da assinatura do contrato, que será em breve, a previsão de duração das obras é de um ano. Restaurar um patrimônio como este é um compromisso com a valorização da cultura do país ¿ disse Isis.

Com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, a Capela Nossa Senhora da Cabeça, no alto da Rua Faro, no Jardim Botânico, é considerada por alguns historiadores o templo mais antigo do Rio de Janeiro. Datada de 1602, a capelinha é muito pouco conhecida, até porque fica dentro de uma propriedade privada, a Casa Maternal Mello Matos. Para manter-se de pé, já passou por três reformas: em 1856, 1902 e 1943. Segundo a secretária-geral da instituição, Lauzimar Ribeiro, o templo começou a ser restaurado pela prefeitura em 2005, mas as obras foram paralisadas no início deste ano. De acordo com André Zambelli, secretário municipal de Patrimônio Cultural, a previsão é retomar o trabalho até agosto e concluí-lo três meses depois. No total, o investimento será de R$130 mil.

Na opinião do diretor do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), Marcus Monteiro, outra jóia do período colonial pouco conhecida é a Igreja de São Gonçalo do Amarante, na Estrada do Camorim, construída em 1625.

¿ É uma das mais belas relíquias da zona rural do Rio de Janeiro e passou por poucas alterações. Conserva muito do estilo colonial.

Marcus cita ainda o Convento do Carmo, na Praça Quinze, como um bom exemplo da arquitetura do Brasil Colônia. Atualmente, a construção de 1619 abriga a sede da Universidade Candido Mendes. O prédio pertence ao governo estadual e, segundo o diretor do Inepac, já foi pedido o término da cessão de uso.

¿ Encaminhei um ofício à Superintendência de Patrimônio Imobiliário para que não haja renovação do contrato. O prédio foi muito descaracterizado. Portas foram transformadas em janelas e janelas foram serradas para a instalação de aparelhos de ar-condicionado ¿ diz Marcus.

Passeio Público foi a primeira área de lazer

Espalhados pela cidade, há ainda exemplos da arquitetura militar, como os fortes, e da arquitetura civil, como sobrados, pontes, chafarizes, reservatórios de água e a primeira área de lazer destinada aos cariocas, o Passeio Público, projetado por Mestre Valentim. Considerado a primeira área de lazer do Rio, foi construído em 1783 em cima da Lagoa do Boqueirão da Ajuda, aterrada com o desmonte do Morro das Mangueiras. Como não havia serviço de esgoto na época, a lagoa, como todas as outras da cidade, recebia os dejetos da população. Em meados do século XVIII, uma epidemia de gripe atingiu boa parte da população e as suspeitas recaíram sobre a insalubridade da lagoa. Em 1861, o traçado foi modificado por Auguste Glaziou. Após a reforma, só restaram o Chafariz dos Jacarés, os obeliscos e o portão de acesso.

Apesar de malconservado, um sobrado de três andares na Rua Gonçalves Ledo é uma das relíquias da arquitetura civil.

¿ Sua peculiaridade são os três andares, o que era pouco comum na época ¿ explica a arquiteta Silvia Finguerut, especialista em restauração de imóveis históricos.