Título: UMA NOVA VELHA GUERRA
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 16/07/2006, O Mundo, p. 39
Analistas apontam diferenças entre choque atual e conflitos passados e vêem risco de crise regional
Aatual explosão da violência no Oriente Médio, envolvendo Israel, o Hamas palestino e o Hezbollah libanês, lembra a escalada de guerra na região do final dos anos 70. Especialistas ouvidos pelo GLOBO vêem perigo nos bombardeios de Israel no Líbano: este continua sendo, como no passado, um país dividido política e religiosamente, com um governo central fraco. O Líbano explodiu em 1975 numa guerra civil que durou até 1990 e resultou em cem mil mortes. Foi palco de interferência estrangeira por todos os lados. Os atores da crise de hoje são os mesmos: Israel, Síria e o Hezbollah, milícia religiosa xiita.
A diferença é que hoje Israel está se confrontando em duas frentes ¿ no Líbano e na Palestina ¿ com milícias xiitas que deixaram de ser meras marionetes de outros países e se tornaram ainda mais poderosas do que no passado. Antoine Basbous, do Observatório dos Países Árabes, diz que o Hezbollah é hoje um verdadeiro Estado dentro do Estado libanês:
¿ É a mais importante escalada dos últimos anos. Não se sabe onde vai parar. O Hezbollah se transformou num exército dentro de um exército, num Estado dentro do Estado (libanês). Tem hoje alianças que vão além de sua capacidade. O Hezbollah recebe entre US$500 mil e US$1,1 milhão por ano do Irã. Recebeu 12 mil foguetes e poderosos mísseis Alzal, com capacidade de alcance de 200 quilômetros ¿ assegura.
Basbous dissocia a crise de Israel com os palestinos ¿ resultante do bombardeio de Gaza em resposta ao seqüestro de um soldado israelense ¿ do confronto entre israelenses e o Hezbollah. Por trás do Hamas há, segundo ele, um combate legítimo, porque a terra palestina está ocupada. Já o Hezbollah não tem a desculpa de uma ocupação, já que Israel se retirou do Líbano há seis anos e a Síria, no ano passado. Para ele, a milícia xiita age em nome do Irã e da Síria, e Israel erra ao atacar a infra-estrutura do Líbano: deveria estar atacando a Síria.
O Irã, segundo Basbous, teria reativado o Hezbollah em resposta à condenação de seu programa nuclear pelo Conselho de Segurança da ONU. E a Síria quer torpedear a investigação internacional sobre a morte do ex-primeiro ministro libanês Rafik Hariri ¿ atribuída a Damasco. O país estaria usando a milícia xiita para mostrar que a Síria continua no comando do Líbano, apesar da retirada de suas tropas, segundo o especialista.
EUA: novas prioridades com guerra no Iraque
Já Barah Mikail, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), em Paris, vê o Hezbollah de forma diferente: para ele, a milícia deixou de ser mera marionete da Síria, e ganhou poder próprio. Na época da presença síria no Líbano, explica o especialista, o Hezbollah era totalmente apoiado pelo governo libanês, que estava sob forte influência de Damasco. Agora os sírios se retiraram e o governo libanês se aproximou dos americanos. Mas a milícia não quer se desarmar, como exigem os EUA. Ao mesmo tempo, a milícia é também um movimento político que tem hoje 14 deputados no Parlamento e dois ministros no governo.
¿ Isso explica por que Israel atacou também o norte de Beirute, quando a influência do Hezbollah está no sul. Com isso, Israel quer dizer ao governo libanês: ou vocês se livram dos dois ministros do Hezbollah, atacam e desarmam a milícia, ou vamos pensar que vocês são cúmplices e vamos puni-los também.
Mas ao atacar o Líbano , Mikail acha que Israel comete um erro estratégico grosseiro: o Hezbollah vai sair ainda mais forte, como saiu o Hamas, depois da morte do líder palestino Yasser Arafat.
¿ É uma aberração. O cálculo israelense é que bombardeando infra-estrutura palestina e libanesa vai levar as populações palestina e libanesa a criticarem seus governos e a insistirem num desarmamento das milícias. O que não vê é que vai acontecer o contrário: radicalizar as opiniões públicas libanesas e palestinas, como as árabes em geral. As pessoas acabam se unindo para apoiar o Hezbollah e o Hamas.
Para ele, se houvesse eleições hoje no Líbano, provavelmente o Hezbollah teria mais votos. Mikail não está convencido de que a Síria e o Irã comandam completamente o Hezbollah. Ele explica que, no início dos anos 80, a milícia era submissa ao Irã. Mas desde que o líder do movimento, Hassan Nasrallah, assumiu o comando em 1994, houve uma ¿revolução¿: defende os interesses dos xiitas, mas primeiro, os interesses dos libaneses.
¿ A violência vai continuar. E talvez vejamos a guerra com a Síria ¿ especula.
Para Anoush Ehteshami, do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de Durham, a escalada do conflito hoje não tem muita diferença do que aconteceu nos anos 80. Ele acha alarmante a rapidez com que a situação está se deteriorando. A culpa, segundo ele, é do chamado Quarteto ¿ Estados Unidos, União Européia, ONU e Rússia. Depois de fazerem Israel e palestinos negociarem um ¿mapa da paz¿ ¿ que delimita uma série de medidas que culminariam com a criação de um Estado palestino ¿ estes países teriam se desinteressado. As prioridades de Washington mudaram com a guerra no Iraque, a situação no Afeganistão se deteriorou, e a ONU, a Rússia e a UE não tiveram coragem para pressionar os americanos ¿ os únicos que têm, de fato, o poder para mudar o jogo.