Título: O PROGRAMA DE AIDS ESTÁ AMEAÇADO
Autor: MAURO SCHECHTER
Fonte: O Globo, 23/07/2006, Opinião, p. 7

OBrasil foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer acesso universal e gratuito ao tratamento da Aids. Nos últimos meses, no entanto, noticiou-se que o futuro do Programa de Aids (PN/Aids), referência mundial, estaria ameaçado pelo alto custo de algumas drogas importadas. Há aqui três afirmações a serem questionadas. O PN/Aids é realmente uma referência mundial? O seu futuro está ameaçado? Seria de fato a maior ameaça o custo de algumas drogas?

Em relatório sobre auditoria realizada em 2002, o Banco Mundial afirmou que, graças à resposta brasileira, a epidemia no país era bem menor do que se previra. O banco ressaltou, porém, que era impossível dimensionar o sucesso pela falta de dados, cuja responsabilidade por coletar seria exatamente do PN/Aids.

As drogas usadas para tratar o HIV podem ter sérios efeitos colaterais, cuja freqüência e gravidade podem variar de país para país. A estavudina, por exemplo, é uma droga capaz de causar acidose lática, complicação que pode ser fatal; é rara nos Estados Unidos, mas ocorre em até 1% dos sul-africanos. O abacavir causa uma alergia que pode ser fatal e é relativamente comum nos EUA, mas rara na África. E o tenofovir pode causar lesão renal em pessoas com doença renal preexistente.

Como as três drogas têm potência parecida, a escolha depende, em larga escala, dos efeitos colaterais. Apesar de mais de 200 mil brasileiros já terem recebido tratamento, não há informações sobre acidose lática após o uso de estavudina, freqüência de alergia ao abacavir ou prevalência de doenças renais. Ressalte-se que a estavudina foi virtualmente abandonada em países desenvolvidos, mas é recomendada no Brasil.

O número de pessoas em tratamento crescerá nos próximos anos, pois só um quarto dos soropositivos está em tratamento, e o número de infectados continuará a aumentar, por não haver uma vacina. No Brasil, os pacientes são atendidos em locais com diferentes complexidades, desde ambulatórios de hospitais terciários, com médicos altamente especializados, até postos de saúde com clínicos gerais. E a maioria dos locais já se encontra superlotada, com insuficiência de pessoal e de instalações.

Para que se possa planejar o aumento da capacidade necessária para atender à demanda, é preciso saber o custo dos vários modelos de atendimento e quantificar as diferenças no prognóstico, caso existam, entre os mais caros e os mais baratos. Também é preciso saber o estado clínico das pessoas com diagnóstico recente da infecção e as causas e a freqüência de adoecimento que possam levar à internação hospitalar. Estas questões, entretanto, não podem ser respondidas, porque faltam dados.

A resposta da sociedade brasileira à epidemia é internacionalmente reconhecida, em especial a busca da participação de todos os setores da sociedade, de forma aberta e democrática. Nos últimos anos, muitos acreditaram que o louvor internacional era dirigido ao PN/Aids (aspectos técnicos) e não à resposta da sociedade (aspectos políticos). Isto permitiu que críticas fossem transformadas em crimes de lesa-pátria, respaldando perseguições a todos os que ousaram questionar qualquer aspecto da atuação do PN/Aids.

Por ser a Aids um problema mundial, a solução necessariamente terá que ser global. É evidente que o Brasil tem menor capacidade de pagar do que os Estados Unidos, mas maior do que a África. Achar a proporcionalidade justa é a grande questão. Ressalte-se que as drogas importadas são vendidas ao Brasil por preços 60%-90% inferiores aos cobrados nos EUA.

Os remédios geralmente representam menos de um terço do custo de programas de saúde pública, sendo os maiores gastos com pessoal e infra-estrutura. Por haver mais de 20 medicamentos contra o HIV e por não serem os remédios o único (nem o mais caro) componente do custo do programa de acesso universal ao tratamento, é simplismo ou diversionismo afirmar que o preço de dois ou três medicamentos é a maior ameaça à viabilidade do PN/Aids. Quem sabe este não seja o momento de a sociedade brasileira voltar a discutir, à semelhança do que ocorria no início da epidemia, os rumos do PN/Aids, buscando tratar assuntos complexos com a profundidade que deveriam merecer?

MAURO SCHECHTER é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.