Título: DANÇA DE NÚMEROS
Autor: RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Fonte: O Globo, 27/07/2006, Opinião, p. 7

Imagine-se em um boteco da Lapa, no Centro do Rio, sexta-feira à noite. De repente se levanta alguém e começa a fazer uma enquete sobre as bebidas preferidas dos aproximadamente 100 clientes presentes. A primeira pergunta é quantos preferem cerveja. O que se vê não é inesperado ¿ 78 mãos levantadas. A seguir se indaga quantos preferem caipirinha. Para surpresa de todos, 87 mãos, aparentemente sóbrias, manifestam-se. Testas se franzem. A terceira indagação é quantos têm preferência por refrigerantes. São 65 mãos no ar. A despeito dos números, no dia seguinte há um cartaz no bar dizendo que ali se bebe a cerveja mais gelada da cidade ¿ seria a bebida preferida pela maioria dos clientes.

Você acha que os resultados da enquete são estranhos e inconsistentes? Sem dúvida. Os fregueses têm, ao mesmo tempo, suas maiores preferências por bebida alcoólica fermentada, destilada e também por não-alcoólicas.

Os recentes resultados da pesquisa Datafolha encomendada pela ¿Folha de S. Paulo¿ e a TV Globo sobre a opinião da população brasileira acerca das cotas raciais no ensino superior são bem parecidos com a hipotética enquete do bar da Lapa. Ao mesmo tempo que 65% dos entrevistados se disseram favoráveis à reserva de vagas para negros nas universidades, 78% são favoráveis à reserva de vagas somente para os melhores alunos, independentemente de cor, raça ou condição social, e 87% são favoráveis à criação de cotas para pessoas pobres, independentemente de cor ou raça. Em outras palavras, cotas para negros ou somente para os melhores alunos ou somente para os pobres estão, simultaneamente, na linha de frente das preferências nacionais. A despeito da dança de números e das múltiplas preferências, a manchete que estampou a capa de importantes jornais ao se divulgar a pesquisa foi que a maioria da população é favorável às cotas raciais.

É difícil explicar os resultados da pesquisa Datafolha. Mas há outros achados mais palpáveis e que, talvez, ajudem a trazer sentido para o que parece ser, em princípio, uma notável inconsistência. Um deles é que somente 9% dos entrevistados se consideram bem informados sobre o projeto de lei conhecido como Estatuto da Igualdade Racial, que estabelece as cotas raciais. A ampla maioria (64%) indicou que não tomou conhecimento sobre a proposta ou que se acha mal informado.

Outro achado consistente é que, à medida que aumenta a escolaridade e a renda familiar mensal, diminui a porcentagem de respostas favoráveis à reserva de vagas. Assim, 52% daqueles com nível superior e 54% daqueles com renda familiar superior a 10 salários-mínimos são contrários às cotas raciais. Algumas das vozes mais estridentes a favor das cotas raciais foram logo afirmando que era a ¿elite branca¿ preocupada com a perda de seus privilégios. Será que é tão simples? Pelo jeito, não. Isso porque a pesquisa também revelou que os autodeclarados pretos e pardos que se consideram bem informados e que têm educação superior se dividiram entre favoráveis e contrários às cotas raciais.

Há um conjunto de resultados que, pouco divulgados, são bem significativos. Indagou-se se o entrevistado considerava a reserva de vagas humilhante para os negros. Um montante de 48% disse que sim, com pouca variação entre os respondentes brancos (50%), pardos (45%) e pretos (48%).

A pesquisa Datafolha é pioneira, a primeira de seu gênero realizada no país. Devido a isso, uma possibilidade é que as perguntas não tenham sido bem formuladas, de modo que o levantamento pode não estar medindo o que se gostaria que fosse medido. Somente outros levantamentos, com outras formas de perguntar, devidamente pré-testadas, ajudarão a elucidar o quadro.

Permanece no ar a indagação: os brasileiros são favoráveis às cotas raciais, às cotas sociais ou vêem a solução das desigualdades através de outras vias? Seja qual for a resposta, o fato é que o grande debate que se trava na sociedade brasileira sobre essas questões e as formas de enfrentamento são extremamente bem-vindas e devem ser ampliadas.

RICARDO VENTURA SANTOS é antropólogo e MARCOS CHOR MAIO é sociólogo.

N. da R.: Carlos Alberto Sardenberg volta a escrever em 3 de agosto.