Título: SAÚDE MENTAL E PÚBLICA PARA TODOS
Autor: PEDRO GABRIEL DELGADO
Fonte: O Globo, 27/07/2006, Opinião, p. 7

Vivemos um importante debate no campo da psiquiatria e saúde mental no Brasil, de que é exemplo o artigo do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, dr. Josimar França (¿O erro da política de saúde mental¿, O GLOBO, 20/7). O centro da discussão é: qual a melhor maneira de organizar os serviços de saúde, para garantir tratamento à imensa legião de pessoas que sofrem com sintomas ¿ mais ou menos graves ¿ que afetam sua saúde mental?

Primeiro, é necessário reconhecer que a tarefa não é pequena nem simples. Se tomarmos apenas os casos considerados mais graves (psicoses, neuroses graves, autismo, deficiência mental acompanhada de grande dificuldade de adaptação social, demências severas), encontraremos aproximadamente 3% da população, em todas as faixas etárias. Só aí são 5 milhões de brasileiros. Pensemos agora na trágica situação do consumo prejudicial de drogas, os casos em que a droga de fato avassala a vida da pessoa, reduzindo suas possibilidades de existência: a dependência do álcool (de 6% a 10% da população depois da adolescência), mais a das drogas ilícitas (cerca de 1% da população) representam um décimo dos brasileiros acima de 12 anos precisando de atendimento urgente, inadiável.

Mas o atendimento não é necessário apenas para quem apresenta problemas considerados graves pela psiquiatria e saúde pública: o mal-estar nosso de todos os dias às vezes se torna insuportável; a angústia ¿ condição indissociável da experiência humana ¿ pode apresentar-se de maneira tão aguda que se torna um risco para as pessoas; o desamparo, o desencanto com as limitações da vida, tudo isto pode atingir paroxismos tais que precisam ser acolhidos, ouvidos, tratados. Também as graves questões da crise urbana, como a violência, têm um impacto devastador sobre a saúde mental, gerando demandas dirigidas à saúde pública.

Este é o desafio. A sociedade brasileira, após 12 anos de intenso debate, aprovou a lei 10.216, em 2001, escolhendo o caminho da reforma psiquiátrica, que obriga o Estado a consolidar uma mudança do modelo assistencial para garantir o acesso de todos ao tratamento. Na época, 90% dos recursos financeiros do SUS federal nesta área destinavam-se a pagar a hospitais psiquiátricos, e a rede extra-hospitalar era escassa e frágil. Hoje observamos uma inversão deste quadro: os recursos aumentaram globalmente, e agora 56% se destinam a hospitais, e 44% ao pagamento de Centros de Atenção Psicossocial (Caps ¿ serviços abertos e comunitários, que substituem a internação sempre que possível), ambulatórios, residências terapêuticas, centros de convivência e cultura, programas de geração de renda, saúde mental na rede de atenção básica, leitos de saúde mental em hospitais gerais e distribuição de medicamentos.

Os Caps são hoje 882 serviços, em todos os estados do país, nos quais trabalham pelo menos 22 mil pessoas e estão em atendimento 350 mil pacientes, em sua maioria portadores de transtornos mentais mais severos. Alguns, os Caps-III, funcionam 24 horas, e aos sábados e domingos. Esta nova rede ainda é insuficiente, mas já está transformando o quadro dramático da desassistência em saúde mental.

E quanto à redução dos leitos em hospitais psiquiátricos? Ela é necessária à mudança do modelo, e vem sendo feita de modo gradual e cuidadoso. A redução não ocorre em municípios que não estejam implantando sua rede de Caps e ambulatórios. Procura-se induzir uma mudança progressiva do perfil dos hospitais, de modo que aqueles de grande porte reduzam aos poucos seus leitos, transformando-se em hospitais menores, onde o atendimento é mais adequado e individualizado. Estão deixando de existir os macro-hospitais de 800 a 1.000 leitos, onde os pacientes com problemas mentais permaneciam o resto de suas vidas isolados do mundo, sem esperança. Hoje, 5 anos depois da lei de 2001, a maioria dos 236 hospitais psiquiátricos brasileiros tem no máximo 200 leitos.

Por tudo isso, não é verdade que a política de saúde mental, iniciada nos anos 90, cause desassistência, nem que os psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e outros profissionais do SUS não sejam qualificados para o atendimento adequado.

Muito foi feito e muito há que fazer. O SUS, como política pública baseada na ética da eqüidade e acessibilidade, tem que seguir enfrentando a construção da rede de saúde mental, e tomar como contribuição positiva as críticas que apontam fragilidades ainda existentes. A psiquiatria, e todas as especialidades do vasto campo da saúde mental, não deve fugir deste debate necessário, mas olhando de frente a realidade dos graves desafios da saúde pública.

PEDRO GABRIEL DELGADO é coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde.