Título: Cães sem dono
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 29/07/2006, O GLOBO, p. 2

Onde se pisa tem galho podre, ainda que brilhem algumas folhas verdes aqui e ali. Esta é hoje a situação da Câmara. Seus galhos podres o eleitor pode serrar, com o voto. Para que não renasçam, serão necessárias outras mudanças, talvez na própria forma de votar. Na Câmara de hoje, menos de 50% dos eleitores dos maiores estados têm representantes. Isso é espantoso.

E acontece porque, com tantos partidos e candidatos, o voto se dispersou. Mais da metade dos eleitores votou em candidatos que não se elegeram. O deputado Alexandre Cardoso, líder do PSB, é um aficionado pelas estatísticas eleitorais. Elas ajudam a compreender o funcionamento do sistema político. Pois mesmo ele só descobriu agora os números desta ¿exclusão eleitoral¿. Em 2002, dos 25,6 milhões de eleitores de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, só 11,2 milhões (43,7%) elegeram deputados. Outros 14,4 milhões de votos foram para o ralo da dispersão, fruto da combinação entre voto proporcional nominal com listas abertas de candidatos. Parte desses votos ajudaram também a eleger os candidatos mais votados do partido. Ou seja, o eleitor votou em José e ajudou a eleger Joaquim. Isso ajuda a explicar o comportamento de Joaquim na Câmara: não sabe quem representa, acha que não deve satisfação a ninguém e que pode usar o mandato para o que bem entender, de preferência para fazer negócios.

Vamos ao Rio: em 2002, dos 10,2 milhões de votantes, apenas 4,5 milhões (44,1%) elegeram deputados. E boa parte destes está lá engrossando a lista de sanguessugas. Os outros 5,7 milhões de eleitores não estão representados. Não têm ninguém na Câmara nem para xingar.

Em Minas, dos 12,6 milhões de votantes, apenas 5,6 milhões (44,4%) elegeram efetivamente deputados federais. Sete milhões de eleitores não estão representados. Se no chamado ¿Triângulo das Bermudas¿ é assim, nos demais estados o panorama não é muito diferente.

¿ Confesso que me espantei. Esta situação aponta uma crise de legitimidade que só pode ser enfrentada com a reforma do sistema eleitoral. A meu ver, não conseguiremos restaurar a Câmara sem adotar o voto em lista fechada e o financiamento público de campanha ¿ diz Alexandre Cardoso.

Mas bem antes de qualquer reforma será preciso barrar a posse dos que conspurcaram o mandato, como prega o deputado Miro Teixeira.

Não há consenso sobre a reforma política. Ontem mesmo o Globo Online fechou enquete em que 73,21% foram contra o financiamento público de campanhas, por exemplo. Apenas 23,54% votaram a favor. Mas algum remédio há que ser adotado.

Agora mesmo, os quatro deputados eleitos com as sobras de votos do deputado Enéas Carneiro, do Prona, aparecem na lista dos envolvidos com a máfia das ambulâncias. Um deles se elegeu com apenas 250 votos. Quanto mais dispensado de prestar contas aos eleitores, mais à vontade fica o deputado para entrar na bandalheira. Como cães sem dono.