Título: BERÇO DA CABALA VIRA CIDADE-FANTASMA
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Fonte: O Globo, 29/07/2006, O Mundo, p. 39

Moradores evocam a fé para permanecer em Safed e resistir aos ataques

SAFED, Israel. Quando as sirenes de alerta ecoam em meio às montanhas da Galiléia, a mais de 800 metros acima do nível do mar, o comerciante Shimon Yifrach, de 46 anos, tenta manter o otimismo e um mínimo possível de normalidade durante os cada vez mais freqüentes ataques de foguetes Katiusha lançados do sul do Líbano contra Israel.

Nascido na tradicional cidade de Safed, berço da cabala, a mística judaica difundida internacionalmente há séculos, Yifrach faz questão de manter aberta a maior e mais conhecida padaria da cidade. Quando não está atrás do balcão, ocupa-se como voluntário da Estrela de David Vermelha, o serviço de primeiros-socorros equivalente israelense da Cruz Vermelha Internacional e, cansado das cenas de destruição vistas no trabalho como paramédico, ele conta que o movimento do negócio caiu pelo menos 90% e o prejuízo com a guerra é inevitável.

¿ Todos os dias me pergunto se vale a pena abrir a padaria, mas é preciso estar com os fregueses nos momentos bons e nos maus também. Não posso abandonar a cidade, pois aqui é minha casa e preciso dar apoio às famílias que ficaram. Já vi de tudo em operações de resgate; então, é preciso manter o sangue-frio e levantar o moral dos poucos que decidiram ficar -¿ disse ele, sendo interrompido por uma nova sirene de alerta.

Nos supermercados, prateleiras vazias

Segundo estimativas da polícia, pelo menos 70% das famílias de Safed deixaram a cidade na última semana. Apenas um supermercado ainda funciona e os poucos clientes encontram algumas prateleiras vazias. Lili Peretz, uma francesa que trocou Paris pelas montanhas do norte há 34 anos, explica que o medo tomou conta dos moradores. Segundo ela, quem optou por continuar vivendo na cidade tenta driblar o susto trabalhando e tentando ignorar os alertas de segurança.

¿ Trabalho aqui oito horas por dia e quando há sirene, respiro fundo, me acalmo e busco abrigo no depósito até que informem pelo rádio que podemos sair. Não nego que estou assustada, mas além de precisar trabalhar para sobreviver, não tenho para onde ir. A guerra já se arrasta há duas semanas, como posso ficar na casa de parentes e amigos por tanto tempo? Seria um peso nas costas dos outros ¿ desabafou.

O ruído constante de helicópteros e explosões vindas da região de Kiryat Shmona, onde ontem caíram pelo menos 30 foguetes, ecoa nas ruas vazias do centro da cidade. Até mesmo a centenária sinagoga do rabino cabalista Yitzhak Luria, considerado o primeiro mestre da cabala, fechou as portas. As centenas de turistas israelenses e estrangeiros que visitam diariamente a cidade, cuja maior fonte de renda é o turismo, desapareceram. Estúdios de artesanato foram abandonados e bares e restaurantes deixados para trás.

Judeus ortodoxos insistem em ficar na cidade

Na parte antiga da cidade, reduto de judeus ortodoxos cuja fé parece ser maior que o medo, poucas famílias insistem em permanecer em casa. Baruch, religioso morador da cidade há 26 anos, deixou a esposa e os sete filhos apenas por alguns minutos para comprar os pães para o shabat, o dia de descanso judaico. Andando rapidamente pelas vielas da cidade, ele garantiu que não tem intenção de abandonar sua casa.

¿ Há os que ficam por ideologia, os que ficam por não ter para onde ir e os que ficam por fé. Há poucas famílias por aqui, mas para um homem temente a Deus, é possível ficar. Se algo tiver que acontecer, será aqui ou em outro lugar, considerado mais seguro. Eu acredito e por isso decidi ficar e me fortalecer espiritualmente ¿ contou.