Título: ENXUGA GELO
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Fonte: O Globo, 30/07/2006, Opinião, p. 6

Oprograma ¿Linha Direta¿, da TV Globo, ao rememorar a chamada chacina da Candelária, ocorrida em julho de 1993, revelou que, dos 65 sobreviventes daquela tragédia, 43 morreram e outros dez estão presos.

É uma estatística mórbida, mas que traduz uma terrível realidade social brasileira que pouco se modificou desde 1993, época da chacina. Seja na Zona Sul ou no Centro do Rio, não são poucos os meninos e as meninas, as moças e os rapazes, que vivem nas ruas, geralmente drogados ou alcoolizados, e praticando delitos para sobreviver.

São pessoas que nunca tiveram ou perderam laços com suas famílias. E muitos já fazem parte de uma segunda ou terceira geração de população de rua.

Esses jovens desajustados, de difícil ressocialização (como exemplifica a estatística dos sobreviventes da chacina da Candelária), constituem um quadro extremo da situação da camada mais miserável da população brasileira.

Trata-se de uma situação agravada pelo distanciamento demográfico em relação às demais parcelas da sociedade. Enquanto os 10% mais pobres têm em média 4,5 filhos, esse índice é de apenas 0,9 entre os 10% mais ricos.

Nos estratos sociais classificados como classe média, o número de filhos por mulher em idade fértil varia de um a dois filhos. A média brasileira já se aproxima de 2,2 filhos, e mesmo nas regiões de menor renda do país, esses índices também recuaram para 2,3 ou 2,4 filhos.

Assim, o grave distanciamento demográfico se concentra nas faixas mais miseráveis da população, que precisa ser atacado por políticas públicas de saúde, caso contrário os programas sociais continuarão enxugando gelo.

Sem orientação e uso massificado de métodos anticoncepcionais, patrocinados pelo poder público ou por delegação do Estado, os miseráveis sempre terão uma prole numerosa, embora esse possa não ser o desejo individual de cada mãe ou pai.

Curiosamente, o planejamento familiar disseminado entre os mais pobres é um tema tabu no Brasil, que nunca faz parte dos programas de candidatos a presidente, governador ou prefeito. É a política do avestruz.