Título: O HEZBOLLAH QUER UM GOLPE DE ESTADO¿
Autor: Ricardo Galhardo
Fonte: O Globo, 04/08/2006, O Mundo, p. 33

O brasileiro Carlos Eddé, político de tradicional família do Líbano, acha que o país pode mergulhar numa guerra civil

Quem paga ordena. É assim que Carlos Eddé, brasileiro filho de um dos mais importantes clãs políticos do Líbano, definiu a influência de Síria e Irã sobre o Hezbollah, grupo radical xiita que enfrenta Israel desde o dia 12 de julho. Neto do ex-presidente Emile Eddé e filho de um ex-ministro, Eddé é presidente do Bloco Nacional Libanês, partido político anti-Síria que apóia o grupo 14 de Agosto, coalizão de 71 deputados que luta contra a influência externa na política libanesa. Em sua confortável casa decorada em estilo art-déco, Eddé, formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, disse que, terminada a guerra com Israel, o Líbano corre o risco de entrar em uma nova guerra civil.

A resposta da comunidade internacional à morte de crianças em Qana foi dentro do esperado?

CARLOS EDDÉ: A resposta da comunidade internacional foi aquém do esperado. É como se a opinião pública já estivesse anestesiada com as imagens da violência, sejam elas no Iraque, sejam na Palestina. Afinal, a segunda intifada já dura cinco anos com imagens diárias de violência desse tipo. Eu diria que as pessoas estão acostumadas a ver esse tipo de violência. Em segundo lugar, tem o veto (no Conselho de Segurança da ONU) dos EUA e de seus aliados, um fator importante na falta de medidas duras contra Israel. Infelizmente esses países estão esperando um desfecho político e para eles isso importa muito mais do que as vidas ou os danos que podem acontecer ao longo do caminho. E eles esperam um desfecho político que seja favorável a Israel e aos países ocidentais, ou seja, o desarmamento de grupos armados no sul do Líbano.

É possível desarmar o Hezbollah depois que a guerra terminar?

EDDÉ: Existem duas formas. A primeira seria uma forma consensual, com aceitação do Hezbollah. A segunda é à força. Acho que nenhuma das duas funciona. O que poderia funcionar é uma combinação das duas. Afinal de contas, as armas nas mãos do Hezbollah são um trunfo político incomensurável na política libanesa e um trunfo estratégico muito importante para o Irã e a Síria na política regional. Irã e Síria não vão tomar uma atitude pensando em fazer a coisa certa. O Hezbollah é uma organização armada montada ao longo de mais de 20 anos, com maciços investimentos financeiros, que tem um fim e não será desativada só porque Israel deixou o Líbano em 2000. Por outro lado, desarmar à força é complicado porque pressupõe uma operação terrestre. E uma reação a uma invasão, seja ocidental seja israelense, é difícil porque a história recente mostrou que você não consegue erradicar totalmente uma guerrilha popular. Se morre um em combate, dez outros nascem no mesmo lugar. Além do que, estaria-se enfrentando uma cultura que acha que o sacrifício em combate é uma forma gloriosa de morrer. O medo da morte não é um fato dissuasivo. O que se deve fazer é o que a sociedade tentou antes da guerra: mostrar que as perdas podem ser muito maiores do que os ganhos, mesmo no caso de uma vitória. Infelizmente, o Líbano vai pagar um preço muito alto pela negligência de grupos que poderiam ter participado da negociação para desarmar o Hezbollah antes da guerra.

Existe o risco de uma nova guerra civil?

EDDÉ: Existe. Existem quatro hipóteses para o desfecho dessa guerra. Uma delas é o Hezbollah aplicar um golpe de Estado. O que o Hezbollah quer é um golpe de Estado. Quer colocar o governo diante de sua fragilidade e mostrar sua força, dividindo o governo. Todos os pró-sírios estão animados com a situação. Outra hipótese é Israel perder a guerra contra o Hezbollah e fomentar uma nova guerra civil, jogando um grupo contra o outro. Na verdade a maior vítima é a democracia libanesa.

Os políticos libaneses estão pagando o preço por terem deixado um vácuo social no qual o Hezbollah cresceu e ganhou apoio da população?

EDDÉ: Não há dúvida que especialmente no sul, que foi ocupado por Israel por mais de 20 anos, existiam dificuldades de o Estado se estabelecer. Além disso, a classe política libanesa, na verdade, é uma forma velada de confederações confessionais. Ou seja, o poder e o dinheiro são distribuídos confessionalmente. Por isso vivemos um regime que, apesar da aparência moderna, é um sistema de clientelismo talvez comparado, no Brasil, com o coronelismo do Nordeste, em que grupos políticos se apoderam do dinheiro público para se manterem no poder. Quem conseguiu fazer isso de maneira muito forte foi o segundo partido xiita, o Amal. O Hezbollah, que tinha outros meios, não entrou neste tipo de jogada, não participou da sangria do Estado, pois tinha um aporte importante do Irã. E com isso montou esta rede social e de empregos. Quando você percebe que em 20 anos o aporte do Irã foi acima de US$4 bilhões, isso não é uma ajuda, é um investimento num instrumento que um dia pode ser usado. É uma coincidência que isso tenha sido criado justamente na fase final nas negociações do Irã com a comunidade internacional sobre a questão nuclear? Tem um velho ditado que diz: quem paga ordena.

Alguns países europeus defendem a entrada da Síria nas negociações como forma de abrandar o conflito. O senhor concorda?

EDDÉ: Seria catastrófico. Estaríamos repetindo o cenário de cem anos atrás, quando a Síria fomentou distúrbios no Líbano e participou indiretamente de assassinatos. A Síria não pode entrar. A Síria certamente encorajou o Hezbollah para ter o pretexto de voltar, e eles vão criar distúrbios até convencerem o Ocidente de que talvez sejam a opção menos custosa. Nós vimos o que foi o mandato sírio no Líbano dado pelos EUA com o aval da comunidade européia. Foi o saque do Líbano com o enfraquecimento de todas as instituições democráticas.

O senhor ficou surpreso com a violência do ataque a Qana?

EDDÉ: Isso não nos surpreende. Aqui estamos acostumados com a violência da qual é capaz o Estado de Israel. Foram mais de 20 anos de ocupação.