Título: DEPOIS DE KOFI ANNAN
Autor: CANDIDO MENDES
Fonte: O Globo, 07/08/2006, Opinião, p. 7

Omassacre das crianças em Qana, pelos caças de Israel no Líbano, exasperou a interrogação mundial quanto a última responsabilidade pela paz do globo. Condoleezza Rice viu desarmar-se sua proposta de trégua, e 80% de Israel apóiam a guerra. Avançou-se a moção de condenar-se a mortandade no Líbano, como genocídio, julgável pela Corte de Haia.

Às vésperas da sucessão de Kofi Annan, o governo de Washington demonstra que não entregará às Nações Unidas a responsabilidade pela estabilização internacional, após o 11 de Setembro. O veto à contenção de Israel na nova guerra não declarada do Líbano define a visão americana no combate ao terrorismo como prioridade sem volta de sua ação mundial.

Mas, por aí mesmo, no caracterizar, com o mais óbvio dos palavrões, a ação do Hezbollah e do Hamas, Bush enfrenta também um novo paradoxo. Como lidar com governos como o da Palestina, que democraticamente colocaram radicais no poder? O que são governos legítimos, e qual o imperativo de reconhecimento que impõem a Washington na busca de soluções realmente bilaterais para a escalada do impasse palestino?

A entrada do Líbano no morticínio surgiu da rapidez da escalada, em resposta ao seqüestro de soldados de Israel no território fronteiriço. Mas a violência represada recrudesceu devastadoramente quando vieram à tona os mísseis do Hezbollah e, pela primeira vez no conflito, as crateras fumegantes de Haifa, na antevisão do que possa acontecer em todo o país. E o que esperar do potencial bélico de Israel, diante do inédito desta confrontação, garantida pelos vetos do Salão Oval a uma interveniência ainda das Nações Unidas em tal composição?

Ao mesmo tempo, o dinamismo da ação política de Bush no Velho Continente arrefeceu o clima de confronto intra-ocidental dos dois lados do Atlântico. E a Velha Europa dos 6, ou dos 12, ainda a acreditar na verdadeira Federação, perde a sua força na ¿Europa dos 25¿.

Os países da antiga dependência soviética, como a Polônia ou a Hungria, começando a chegar a Estrasburgo só reforçam o instinto da satelitização, no volver disciplinadamente a Oeste, e às lógicas da hegemonia de Washington.

O fato consumado deste conflito reside na aceitação, pelos Estados Unidos, de um mundo a perigo desde o 11 de Setembro, levando à espionagem de 200 milhões de telefones. Da mesma forma, é mínima a diferença entre democratas e republicanos quanto à prioridade da defesa além-fronteira dos Estados Unidos.

Prolonga-se indefinidamente qualquer data efetiva de saída do Iraque, cresce a idéia de que o adversário é o Islã, por sobre terroristas específicos. Começam a temer os Estados Unidos as agressões continuadas de um adversário anônimo dentro de suas fronteiras, inimaginável antes do 11 de Setembro. O pedido do diálogo internacional avançado, de forma dramática, por Khatami quando no governo do Irã, troca-se por um afastamento deliberado do Islã pela cultura dominante do Ocidente.

Os últimos dados do Gallup são dramáticos: mais de 50% do eleitorado americano não têm noção do porte nem da importância do mundo muçulmano, e 67% declaram que não têm interesse em se informar. Republicanos e democratas se identificam nesta prioridade internacional da segurança. O Patriot Act vem de ser novamente prorrogado e a vitória, por um voto, na Corte Suprema, reconhecendo a ilegalidade de Guantánamo, abre, de toda forma, o caminho ao respeito à Convenção de Genebra e à garantia, aos suspeitos de terrorismo, dos princípios do Estado de direito.

O julgamento de Saddam se interrompe e põe em causa o problema básico, reclamado por essas mesmas Nações Unidas. Até onde a Corte de Haia é a responsável hoje no mundo para a discussão das questões do etnocídio e do genocídio fora dos tribunais, como o de Bagdá, expostos ao assassínio repetido dos advogados dos acusados? Como se dará a sucessão de Kofi Annan no quadro de restabelecimento de uma ¿cultura da paz¿, a superar a ¿civilização do medo¿?

E até onde o novo secretário se transforma em fiador da permanência dos Estados Unidos na organização? Os atuais conflitos no Líbano aceleram esta perplexidade. Lula abrirá a Assembléia da ONU cortada por esta interrogação de base.

E o que será das Nações Unidas sem o seu protagonista básico, o do Salão Oval? Em tempos bucólicos para os dias de hoje, a América de Wilson retirou-se da antiga Liga das Nações. Quem hoje se lembra dela?

CANDIDO MENDES é presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.

N. da R.: Excepcionalmente, não é publicado hoje o artigo de Paulo Guedes.