Título: Irrelevância e decadência
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 06/08/2006, O GLOBO, p. 2

O sociólogo Francisco de Oliveira tem pregado a irrelevância da política e, por decorrência, dos parlamentos. Ele aponta razões mais complexas, que vão além da ética, dos delitos, do caixa dois e dos sanguessugas. Relevante ou não, a política está sendo desmoralizada por seus próprios agentes. Para a oposição, é tudo culpa do governo Lula, que adotou e aprofundou as práticas do atraso. Para os governistas, culpa do sistema apodrecido que precisa ser reformado.

Fora dessa dicotomia, as teses acadêmicas, como a de Chico Oliveira. Para ele, que já deixou o PT e o PSOL, a política e o Parlamento não têm mais importância porque já não orientam a tomada das mais importantes decisões nacionais. Com a financeirização do Estado, os governos, todos eles, ficaram subordinados ao comando do capital transnacional, subtraindo o poder decisório dos partidos e dos parlamentos. A política continua existindo como pantomima, e no seu vazio de sentido acontecem as presepadas.

Mas teses acadêmicas são produzidas na redoma, longe da salsicharia da política, em cujo interior devem estar acontecendo outras coisas que ajudam a explicar o auto-enlameamento dos políticos. Afinal, o que leva um deputado a arriscar seu mandato metendo-se em falcatruas? Estes sanguessugas ganharam propinas ridículas diante dos números da grande corrupção. Associaram-se a um delinqüente que agia de forma abjeta no superfaturamento de ambulâncias, algumas montadas toscamente sobre carros velhos. E por que hoje, mais que ontem, os deputados vendem a alma para ter uma emenda liberada e submetem-se ao caixa dois para ganhar uma ajuda de campanha?

Poucos são os que simultaneamente põem a mão na massa e discutem seus ingredientes. O deputado Sérgio Miranda passou a vida no PCdoB. Punido por votar contra as reformas de Lula, deixou o partido por discordar do apoio ao governo. Foi para o PDT e, mesmo desiludido com a política, vai tentar seu quinto mandato. Seu diagnóstico guarda parentesco com a tese de Chico Oliveira, mas vem de longa vivência crítica na salsicharia. Acha ele que, feita a transição, até a Constituinte a política foi comandada por idéias, gerando aquelas disputas que dividiam e apaixonavam. Havia o fisiologismo, mas não o aparelhamento. PFL e PMDB enlouqueciam Sarney brigando por vagas de fiscal do Funrural! Mas fazia-se luta política, não luta de poder, como hoje, e assim fez-se o impeachment de Collor. Até o fim do breve mandato de Itamar, fazia-se uma outra política.

¿ As grandes questões daquele tempo, como a Lei da Propriedade Intelectual, produziam grandes embates. Tudo era intensamente negociado dentro do Congresso, com todos os partidos. Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda, negociou a aprovação dos pressupostos do Plano Real. A partir de seu governo, começou a sujeição do Congresso e o declínio da política, que com Lula chegou à decadência ¿ diz Miranda.

Nestes últimos dez, 12 anos, o Congresso foi deixando de deliberar sobre temas relevantes, que passaram a ser decididos em outras instâncias, como o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional. Muito raramente acontece uma votação que constrange os parlamentares, por afetar a vida de muita gente, como agora com esta MP dos aposentados. As MPs fizeram sua parte, o Planalto passou a ditar toda a agenda. Irrelevantes, os deputados foram rebaixados à categoria de despachantes. Surgiu o baixo clero. Hoje o que qualifica um deputado diante do eleitor, diz Miranda, não é a atuação, as opiniões ou o voto. É a capacidade de garantir obras e recursos.

¿ Perguntei a um colega se ele não enfrentaria problemas por votar certa matéria impopular. Ele me disse que do voto ninguém se lembraria, mas sim da ponte que conseguira para uma região. E é assim mesmo.

Isso sempre existiu, mas passou a ser a tônica, o combustível da política. Hoje, numa eleição, avalia o deputado, 80% dos votos estão vinculados a estruturas de poder local. Governos estaduais e federal competem no aliciamento de prefeitos. Através de seus cabos eleitorais, eles negociam grandes lotes de votos. Prometem e entregam a mercadoria, assegurando a eleição de deputados estaduais e federais. Depois, cobram a contrapartida. Partido é secundário. Estão aí tantos prefeitos pefelistas apoiando Lula, que os contemplou com recursos. Outra não é a prática, nas grandes cidades, de nichos de poder como os movimentos sociais, as organizações assistencialistas, as máquinas sindicais e similares. Só uns 20% de votos urbanos seriam ¿livres¿ e sensíveis a idéias e projetos. Ajudam a eleger os ¿deputados de opinião¿.

Reduzidos à irrelevância e pressionados pelas bases, os deputados, em sua grande maioria, tornam-se dependentes químicos dos governos. Do federal ou dos estaduais. Viciados em emendas e favores, mandam às favas as convicções. Alguns sucumbem no pântano.

¿ Nada disso justifica a delinqüência ou suprime as culpas individuais. Mas esta nova cultura certamente ajudou a produzir o que estamos vendo, a completa ¿mafialização da política¿.