Título: TRÁFICO ASSUME PAPEL DE TRIBUNAL
Autor: Ruben Berta e Vera Araujo
Fonte: O Globo, 06/08/2006, Rio, p. 23

Por temer represálias, moradores de favelas evitam recorrer à Justiça

Com medo de sofrerem represálias dos bandidos por recorrer à Justiça, moradores de favelas vêm procurando o ¿tribunal do tráfico¿, cujos julgamentos normalmente resultam em penas de morte. Foi o caso de uma moradora da Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, que, depois de ser espancada, pediu a intervenção de traficantes para afastar o companheiro de casa. Os bandidos ordenaram que ele deixasse a favela. O homem, no entanto, retornou e os criminosos mudaram a sentença: ele foi assassinado com sete tiros.

Se a mulher recorresse à Justiça comum, caberia uma ação de afastamento do lar. O oficial de Justiça, então, acompanhado da polícia, poderia usar a força para retirar o agressor da residência do casal.

Segundo uma oficial de Justiça que atua na área da Maré, o problema desse tipo de medida é a presença da polícia:

¿ A nossa ida às favelas com a polícia causa prejuízo ao tráfico. Por isso, os traficantes proíbem, muitas vezes, que os moradores procurem os serviços da Justiça ¿ contou ela.

Oficial precisou fazer acordo com traficantes

Há situações em que é preciso até fazer acordos para ganhar passe-livre nas favelas. Na primeira vez em que entrou no Morro da Mineira, no Catumbi, um oficial de Justiça foi cercado por homens armados. Ele conseguiu convencer o chefe do tráfico local de que não era informante da polícia e que estava ali só para cumprir a ordem do juiz. A estratégia acabou servindo para o vizinho Morro de São Carlos, dominado por facção rival.

¿ Pude andar nas duas favelas livremente por um bom tempo, até que os dois (chefes do tráfico) acabaram sendo mortos. Desde então, não subi mais nesses morros ¿ contou.

Seja pela dificuldade de localização do endereço, seja pelas barreiras criadas pelo tráfico, moradores de favelas acabam sendo prejudicados pela falta de acesso dos oficiais de Justiça às comunidades. O defensor público do 2º Tribunal do Júri Pedro Carriello, que trabalha com acusados de crime contra a vida, disse que um réu pode até ser considerado foragido e ter sua prisão pedida por um juiz, caso não seja encontrado.

¿ É um fato grave, pois pode resultar na perda da liberdade de uma pessoa que não pôde exercer plenamente seu direito de defesa ¿ comentou Carriello.

No caso de processos criminais, se o réu não é encontrado, é citado por edital. Se ainda assim não comparecer em juízo, o processo é suspenso. Cabe a cada magistrado avaliar o pedido de prisão preventiva. Caso determine a detenção, o réu pode ser então considerado foragido.

Na área cível, após a citação por edital, o processo pode correr à revelia do réu, mas um juiz precisa comunicar o fato à Curadoria Especial da Defensoria Pública, para preservar o direito de defesa.