Título: A lei do medo
Autor: Ruben Berta e Vera Araujo
Fonte: O Globo, 06/08/2006, Rio, p. 23

Por causa da violência, oficiais de Justiça deixam de entregar até 80% dos documentos em pelo menos oito favelas

¿Oque você está procurando aqui?¿ Foi com essa pergunta e uma arma na cabeça que um oficial de Justiça foi recebido, em plena luz do dia, há cerca de dois meses, numa das principais ruas da Favela da Rocinha. Ele ia cumprir mais uma etapa de um processo de divisão de bens, mas foi barrado por traficantes. O caso é somente um na rotina de um território cada vez mais distante da lei: segundo estimativa da Associação dos Oficiais de Justiça Avaliadores do Estado do Rio (Aoja-RJ), em pelo menos oito comunidades da capital chega a 80% o número de atos processuais que não são cumpridos, tendo o medo e a violência como pano de fundo.

¿ Nós buscamos ter responsabilidade para tentar cumprir nosso trabalho, mas há locais a que realmente a Justiça não pode chegar. Há áreas em que o oficial entra sem a certeza de que vai sair. Procuramos de todas as formas concluir a nossa tarefa, mas o limite é a nossa vida ¿ afirma o presidente da Aoja-RJ, André Moreno.

Ainda de acordo com Moreno, a situação tem se agravado nos últimos cinco anos. Nesse período, ele diz que chegaram à associação relatos de pelo menos 20 casos graves de violência contra oficiais de Justiça, como roubos, agressões, cárcere privado e até tentativa de estupro. Na capital, ele cita como os lugares de maior risco as comunidades do Borel (Tijuca) e do São Carlos (Estácio), os complexos do Alemão e da Maré, partes da Rocinha, Jacarezinho, Cidade de Deus e Morro da Coroa (Santa Teresa). O Morro do Dendê, na Ilha do Governador, e Vigário Geral não constam da lista da Aoja-RJ, mas também são áreas críticas, segundo oficiais de Justiça.

As barreiras à Justiça em locais de risco não se restringem a processos da área criminal. O coordenador da Central de Mandados das Varas de Família da capital, Francisco Budal, conta que 15% de seus atos processuais não chegam às mãos dos destinatários, por eles morarem em favelas dominadas pelo tráfico. A central recebe, em média, quatro mil mandados por mês, sendo que cerca de 2.800 são destinados a regiões consideradas perigosas.

¿ A gente enfrenta um risco de que as pessoas não têm idéia ¿ diz o coordenador.

Na Vara de Família, ainda segundo Budal, 60% dos mandados são cumpridos com êxito. Em 25% dos casos, a pessoa não é encontrada por ter se mudado ou devido ao endereço estar errado. Repórteres do GLOBO tiveram acesso a relatos e certidões de oficiais de Justiça de varas como as de Infância e Juventude ou de Fazenda Pública, que comprovam a dificuldade de cumprir atos como citações, intimações e notificações, em áreas de risco.

A dificuldade na entrega de mandados em favelas onde o tráfico é ostensivo é reconhecida pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça, encarregada da fiscalização do serviço. O juiz auxiliar da corregedoria, Murilo Kieling, ressaltou que os problemas lembram os vividos por outros profissionais de serviços essenciais, também impedidos de atuar, como carteiros e garis:

¿ Não queremos atos de heroísmo. Não há como intimar alguém na Grota (no Complexo do Alemão, onde o jornalista Tim Lopes foi morto por traficantes em 2002).

CONSELHO DA MAGISTRATURA RECONHECE PERIGO na página 24