Título: UMA LEGIÃO DE SUPERENDIVIDADOS
Autor: Aguinaldo Novo
Fonte: O Globo, 28/08/2006, Economia, p. 16

Crédito fácil faz brasileiros, sobretudo de baixa renda, se endividarem além da conta

Fran é motorista de uma empresa em São Paulo e ganha R$1,1 mil brutos por mês, insuficientes para saldar uma dívida com bancos e cartões de crédito que já chega a impensáveis R$40 mil. O débito começou com pequenos empréstimos para ajudar nas despesas da casa e não parou mais de crescer. Gracionor Rodrigues de Souza vive de trabalhos esporádicos há dois anos, desde que foi demitido de uma empresa de laticínios. Juntos, ele e a mulher, que trabalha como empregada doméstica, têm uma renda mensal de mil reais, para saldar uma dívida total de R$4 mil com financeiras de bancos.

¿ Virou uma bola de neve. Todo dia chego em casa à espera de alguma notícia ruim ¿ afirma ele, que teve os serviços de energia, água e telefone de casa cortados por falta de pagamento.

Fran, que pediu para não divulgar o nome completo, e Gracionor são exemplos do que os economistas passaram a chamar de superendividados ou superinadimplentes: consumidores que cederam às facilidades do crédito abundante ¿, por compulsão ou necessidade ¿ perderam o controle das contas e agora vêem ameaçada a própria subsistência.

Esse problema vem crescendo na mesma proporção da expansão do crédito, como mostra estudo inédito da Federação do Comércio no Estado de São Paulo (Fecomércio-SP). Da amostra de mil pessoas entrevistadas pela entidade este mês, 55% tinham algum tipo de dívida. Destes, 37% deixaram de pagar a fatura em dia. Ao cruzar os dados, a Fecomércio descobriu que em 75,7% dos casos em que existe inadimplência, as dívidas consomem pelo menos 50% da renda familiar mensal. Em agosto de 2005, eram 45,5%.

São Paulo ganhará núcleo do Procon

Cresceu também o percentual de consumidores inadimplentes que ganham menos de dez salários mínimos, o equivalente hoje a R$3,5 mil. Essa parcela passou de 83% para 90%, indicando que o consumidor de menor renda é o que perde mais com o endividamento.

¿ A explosão do crédito nos últimos anos está levando ao superendividamento ¿ afirma a diretora da assessoria econômica da Fecomércio, Fernanda Della Rosa.

Cenário parecido foi captado por uma pesquisa realizada pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. A entidade entrevistou 1.092 pessoas em quatro bairros na periferia da Região Metropolitana de São Paulo, com o objetivo de medir o progresso econômico e social dessas comunidades. Desse trabalho, emergiu também um retrato do endividamento. São trabalhadores com renda familiar média mensal de R$1.148, para uma dívida média, no caso dos inadimplentes, de R$982 ¿ o que já dá 85,6% da renda estrangulados pelo débito não pago. No caso das famílias com renda mensal inferior a dois salários mínimos (R$700), a dívida chega a comprometer até quatro salários inteiros.

As entrevistas foram feitas em meados de 2005 nos bairros de Serraria (Diadema), Montanhão (São Bernardo), Cidade Tiradentes e Capão Redondo (ambos na capital), mas os resultados só saíram no fim de maio. Dos entrevistados, 44,1% tinham dívidas em lojas e 28,1%, com cartão de crédito. Mas 30% também deixaram de pagar a conta de água e 28,1%, a de energia elétrica.

¿ Essas pessoas estão na situação de vender o almoço para pagar o jantar. Mais um pouco, e terão de vender os dois ¿ diz Alexandre Costa Oliveira, técnico do Procon.

Oliveira é um dos coordenadores de um novo núcleo de atendimento do órgão em São Paulo, voltado exclusivamente para os superendividados. Já existem serviços semelhantes no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. O atendimento em São Paulo deve começar antes de novembro. Até lá, o Procon vai tentar costurar acordos de cooperação com bancos e órgãos da Justiça. Oliveira explicou que o serviço vai receber só os casos considerados graves, em que o consumidor não consegue mais adquirir produtos que garantam sua subsistência, como alimentação.

Os especialistas elegem dois culpados por esse quadro: os próprios consumidores e o mercado, que sonegaria informações sobre os riscos das operações. De acordo com dados do Banco Central, o crédito no país equivale a cerca de 33% do PIB, muito pouco perto de outros países emergentes. Mas o emprego e a renda por aqui continuam a crescer de forma lenta. Enquanto o crédito para pessoa física avançou em média 29,7% nos últimos 12 meses, até junho, a renda dos ocupados medida pelo IBGE aumentou somente 6,7%.

¿ Ganho R$1,1 mil e, só de prestação do carro, que uso no trabalho, já gasto R$600. Vou pagar as dívidas como? ¿ diz a motorista Fran.