Título: A SAÚDE DEPENDE DE UMA CANETA
Autor: Carlos Varaldo
Fonte: O Globo, 27/08/2006, Opinião, p. 7

Saudades do ano 2000, quando orgulhosamente o Estado do Rio de Janeiro era considerado o melhor centro de tratamento da hepatite C, uma referência nacional, oferecendo o maior número de tratamentos de todo Brasil, e pacientes de outros estados recorriam ao nosso para receber tratamento. Em sete anos passamos a exportar doentes para outros estados e o Rio de Janeiro já caiu para o 14º lugar em oportunidades de acesso ao tratamento. Os habitantes do Acre têm 14 vezes mais facilidade de acesso aos medicamentos que os residentes do Estado do Rio.

Há vinte meses nenhum paciente cadastrado na Secretaria estadual da Saúde recebe administrativamente o interferon peguilado, e somente 150 pacientes estão em tratamento, todos por ordem judicial. Porém nos últimos meses nem sequer com a ordem judicial o medicamento é entregue, o que até desmoraliza a Justiça.

O interferon peguilado é um remédio ¿excepcional¿, como os medicamentos para transplantados e renais crônicos. Como tal, cabe ao estado realizar sua compra e distribuição, recebendo mensalmente do governo federal aproximadamente R$5 milhões como contrapartida. O Rio de Janeiro, segundo auditoria do Ministério da Saúde, gasta R$12 milhões com a aquisição, participando assim com 120% no financiamento; já a maioria dos estados necessita complementar até 30%. Isso porque pagamos R$1.200 por ampola de interferon peguilado, quando São Paulo, Acre ou Bahia pagam até R$600. Os outros estados sabem negociar e pagam aos fornecedores em dia; o Rio de Janeiro atrasa até mais de um ano.

Em todo o Brasil o remédio é aplicado em vez de entregue ao paciente, com o que se tem completo controle, evitando desvios. Mas o Rio nunca teve interesse em adotar esse sistema, obrigatório por lei. A farmácia do estado não tem controle sobre a entrega; não tem computador nem farmacêutico responsável, nem alvará de funcionamento da Vigilância Sanitária, nem gerador para manter refrigerados os medicamentos, sequer geladeiras com controle de temperatura. O paciente entrega a receita para quatro ampolas e somente recebe duas, devendo procurar outra receita para mais quatro, para voltar a receber as outras duas.

Com estas ¿sobras¿, retirando daquele que aguarda tratamento, o estado fornece os medicamentos para atender às ordens judiciais com financiamento federal, desviando um recurso que por lei tem um destino específico. A contrapartida do ministério visa a fornecer remédios administrativamente à população. Ordens judiciais devem ser atendidas com recursos do estado.

Semana passada a 11ª Câmara Civil do Tribunal da Justiça restabeleceu parte da ordem jurídica prevista na Lei do SUS, ao determinar que estado e municípios são responsáveis solidariamente pelo fornecimento do interferon. Mas esta é uma solução paliativa, e os pacientes deverão continuar a recorrer ao Judiciário como se este fosse uma farmácia.

A solução definitiva se encontra na mesa do Juiz da 28ª Vara Federal, em ação civil pública aberta de forma conjunta pelos ministérios público federal e estadual, na qual é solicitada a intervenção federal no Programa Estadual de Medicamentos Excepcionais. O pedido é simples de ser executado pelo governo federal, que em vez de enviar os recursos passaria a comprar e enviar os medicamentos, como já faz com os remédios para tratamento da Aids, da tuberculose e da hanseníase. Os recursos já existem, o sistema já está estruturado, nada faltando ser inventado. Aumentar os recursos federais é fomentar o desperdício e os desvios. O estado já mostrou ser incapaz na gestão do programa. A mudança deve ser radical.

O resultado da desordem, da desorganização, da falta de controle, da ineficácia já apresenta uma conta volumosa. Há três anos, 300 pacientes estavam na lista de espera por um fígado no Rio de Janeiro. A falta de medicamentos inflacionou a lista para mil e duzentos cidadãos que só com um transplante podem agora ser salvos da morte. O que só tem precedentes nos países mais miseráveis do mundo.

Quem trabalha honestamente para garantir sua dignidade é tratado como marginal quando necessita cuidar da sua saúde. Ao procurar a Secretaria da Saúde encontrará cartazes informando que ¿desacato ao funcionário público é crime previsto por lei¿, não podendo se exaltar pela falta de medicamentos.

A última e derradeira esperança passou a ser a caneta do juiz da 28ª Vara Federal. Até que ele decida a favor da população do Rio de Janeiro, os doentes de hepatite C deverão continuar a procurar a rodoviária para receber tratamento em outros estados. A vida de milhares de pessoas só depende de uma caneta!

CARLOS VARALDO é presidente do Grupo Otimismo de Apoio ao Portador de Hepatite.