Título: O PARAÍSO DOS BINGOS
Autor: Carla Rocha
Fonte: O Globo, 27/08/2006, Rio, p. 26

Com liminares de fora do estado, novas casas de jogo são abertas e setor fatura R$1 bi por ano

Mais de um século depois da invenção do jogo do bicho, o Rio faz uma aposta de risco e ganha ares de Las Vegas. Proibidas em todo o país, casas de bingo estão conseguindo liminares até de outros estados para se instalar em pleno Centro da cidade, graças à falta de repressão policial. A Procuradoria da República do Rio descobriu a existência de novos estabelecimentos, que alegam ter liminares da Justiça federal e até do Tribunal de Justiça de São Paulo ¿ que, por lei, não tem jurisdição sobre outro estado. As investigações revelam que os bingos do estado devem faturar atualmente mais de R$1 bilhão por ano.

As áreas nobres do Rio ainda são o endereço principal dos bingos. A descoberta das decisões judiciais de fora do estado levanta a suspeita de que alguns estabelecimentos estejam vindo para cá por causa da repressão policial em seus estados de origem. Há cerca de um ano, o Magic Bingo exibe um vistoso letreiro na Rua da Assembléia, no Centro, afirmando repassar parte da receita para uma entidade esportiva bem longe do Rio: a Liga Bauruense de Futebol Amador, no interior de São Paulo. À Procuradoria da República, a casa informou ter uma liminar da 23ª Vara Cível Federal de São Paulo. Na verdade, o documento foi concedido ao Bingo Cidade, em Bauru, mas ele está fechado por outra ordem judicial.

Bingo no Rio daria ajuda a liga de Bauru

Procurado, o presidente da Liga Bauruense de Futebol Amador, Milton Martins, mostrou-se confuso e disse não saber ao certo se a entidade recebia dinheiro do bingo do Rio. Depois, ligou para o jornal, afirmando que o contrato com o Magic Bingo foi confirmado por seu contador. Martins também não soube informar os valores recebidos pela entidade. Sobre a liminar ¿ O GLOBO teve acesso ao documento ¿ Martins, que é advogado, sustentou que a sentença estendia a autorização a outros bingos da liga.

¿ Não estou muito por dentro dos detalhes porque quem cuida disso é meu contador ¿ justificou Martins, que também receberia recursos de bingos de São Paulo, Campinas e Jaú.

Desde 2003, quando a Justiça federal do Rio determinou o fechamento de todas as casas no estado, o mercado, em vez de diminuir, aumentou. Os bingos, que chegaram a fechar por curtos períodos, passaram de 39 para 47. Recentemente inaugurado, o Bingo Senador Dantas, também no Centro, é outro exemplo de que os empresários não são incomodados pela polícia. O bingo, que informa ter liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo, garante que dá parte do faturamento à Confederação Brasileira de Remo. A entidade apenas confirmou o repasse, mas não forneceu detalhes do contrato.

Os lucros seriam incalculáveis, se um ex-tesoureiro dessas casas de jogo não tivesse revelado, em inquéritos criminais do Ministério Público federal, que cada máquina de videobingo (similar mais sofisticado das caça-níqueis) fatura, em média, R$3 mil ao dia. Em geral, as máquinas ficam logo na entrada dos bingos, porque são responsáveis pela maior parte do faturamento. São dezenas, nunca menos de cem. Numa visita ao Bingo Assembléia, que fica a menos de cem metros do Magic Bingo, foi possível ouvir comentários dos gerentes sobre o movimento de clientes na outra casa do grupo, o Bingo Arpoador, um dos maiores do estado.

¿ Está bombando. Estamos vendendo 1.200 cartelas às três da manhã ¿ garantiu um funcionário.

O procurador da República José Augusto Vagos afirmou que esses novos bingos não têm qualquer amparo legal.

¿ Em relação às supostas liminares, a Justiça estadual de São Paulo não tem jurisdição sobre a federal. E as decisões federais do tribunal de lá não podem ir de encontro a outra preexistente ¿ afirmou Vagos, referindo-se à liminar que, há três anos, proíbe o jogo no Rio, do juiz Guilherme Calmon da Gama, da 6ª Vara Federal, onde corre uma ação civil movida pelo Ministério Público federal contra os bingos.

A vista grossa da polícia permite que a exploração dos bingos seja um negócio seguro e de retorno rápido. E novas casas surgem todos os dias na cidade. O Bingo Scala, no Leblon, que estava fechado, deve reabrir dentro de um mês, no segundo andar da casa de show. Um funcionário, que não se identificou, informou que o lugar foi arrendado por uma empresa. A novidade é anunciada pelas placas da obra em andamento. Por intermédio de sua assessoria de comunicação, o estado informou que está impedido de fazer a repressão por uma medida provisória da União de 2004 e que, além disso, os bingos têm liminares.

Segundo a Procuradoria da República, apenas alguns bingos têm, de fato, liminares. O presidente da Associação de Bingos do Rio (Aberj), Paulo Ferreira Lino, sustenta que todos estão funcionando legalmente e respondeu a perguntas por e-mail. Segundo ele, o negócio sofre com a falta de regulamentação. Lino afirmou que os bingos geram hoje, no Rio, cerca de seis mil empregos diretos e poderiam repassar para o estado mais de R$30 milhões anualmente, se estivessem legalizados. Ele acredita que o preconceito ainda prejudica o setor.

¿ Devemos deixar claro que nunca foi provada qualquer ligação da atividade com crimes de lavagem de dinheiro e narcotráfico ¿ afirmou.

O Ministério Público federal investiga possíveis crimes tributários e de lavagem de dinheiro das casas de bingo.

¿ O jogo está proibido. É contravenção penal, de competência do Ministério Público estadual ¿ diz o procurador federal Luiz Fernando Voss, que também atua em inquéritos contra as casas de jogo.

O lobby dos bingos é pela legalização. O presidente da Federação Brasileira de Bingos, Carlos Eduardo Canto, acena com a possibilidade de o setor gerar R$2,6 bilhões em tributos por ano. Ele diz que os 500 bingos de todo o país estão dispostos a ser fiscalizados:

¿ Todo setor que fica na clandestinidade acaba caindo nas mãos de bandidos. Os empresários sérios acabam desistindo do negócio.

Ao percorrer o território livre do jogo, O GLOBO encontrou situações absurdas, como um bingo recém-inaugurado ao lado da favela de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, que não tem sequer alvará da prefeitura. O Bingo Rio das Pedras foi procurado, mas ninguém atendeu o jornal. Além de não ter alvará, não há registro desse nome na Junta Comercial do Rio. É desconhecido até da Aberj.