Título: UM ANO DEPOIS, NOVA ORLEANS AINDA AGONIZA
Autor: Bob Dart e Nicolai Ouroussoff
Fonte: O Globo, 27/08/2006, O Mundo, p. 45

Cidade luta para se recuperar da devastação provocada pelo Katrina, o maior desastre natural da história dos EUA

NOVA ORLEANS. Um ano depois (terça-feira) da passagem do furacão Katrina, o maior desastre natural da história dos Estados Unidos, cada casa de Nova Orleans tem uma história para contar. Algumas foram reocupadas, mas muitas ainda estão em ruínas. Segundo estimativas, dos quase meio milhão de residentes de Nova Orleans, menos de 200 mil voltaram para uma cidade que ainda agoniza. Em Nova Orleans, recuperar-se é uma questão que envolve tanto geografia como perseverança.

A maioria dos habitantes do bairro Lower Ninth Ward, um dos mais afetados pelo Katrina, é de fantasmas. No similarmente afetado bairro de New Orleans East, menos de um em cinco dos 90 mil residentes voltou para casa, de acordo com um estudo realizado pelo instituto de pesquisa Brookings. O mesmo ocorre em Lakeview, que beira o canal principal da cidade. No entanto, o contrário se observa nos famosos French Quarter e St.Charles Avenue, cuja destruição ocorreu mais devido ao vento do que à água. Quase todos voltaram para lá.

Duas ruas ilustram como a localização geográfica ditou a recuperação. Na famosa Bourbon Street, localizada numa área mais elevada da cidade, bares estão abertos, bandas tocam a noite toda e pedestres estão em clima de festa. Já na avenida comercial St.Bernard, em Chalmette, não há pedestres. Charlie Barber Shop (barbeiro), Ken's Tropical Fish (peixaria), Campiere Custom Design (alfaiate), A-1 Lock and Key (chaveiro) e todas as outras lojas ainda encontram-se fechadas.

De acordo com o Brookings, o número de funcionários do metrô de Nova Orleans, por exemplo, é 30% menor do que há um ano. Dados semelhantes são verificados em várias outras companhias da cidade.

`O projeto mais amedrontador dos EUA¿

Yolanda Evans, que passou a maioria dos últimos 12 meses com a família na Geórgia, resolveu voltar, apesar de seu emprego de agente comunitária estar ameaçado.

¿ A reconstrução será lenta. Mas quero fazer parte do futuro de Nova Orleans.

Seu regresso mostra a complexidade que envolve milhares de famílias. A casa de Evans, em New Orleans East, pode ser reparada, embora a custos elevados. Mas apenas poucas casas ao redor foram reabitadas.

¿ Não quero gastar todo o meu dinheiro na reconstrução e depois não ter nenhum vizinho ¿ diz ela, que vive com os filhos em um dos milhares de trailers disponibilizados pela Fema (agência do governo dos EUA que administra situações de emergência), no jardim da casa de seu pai.

Recuperar Nova Orleans é, para muitos especialistas, o mais amedrontador projeto de reconstrução urbana da história americana. A maioria dos bilhões de dólares, que o governo federal americano já liberou, foi destinada a trabalhos de emergência e reparo das barragens rompidas. Novos diques foram colocados ¿ mas até o porta-voz do Grupamento de Engenharia do Exército, Ed Bayouth, já declarou que o sistema ¿recebeu reparos temporários¿.

Em relação aos bairros em si, a situação é ainda mais complexa. Depois de um plano frustrado, pelo qual autoridades foram criticadas de descriminação racial e social, em julho resolveu-se que o trabalho passaria a ser de uma organização local, a Greater New Orleans Foundation. No dia 1º de agosto, a fundação iniciou uma série de debates públicos para que representantes dos moradores dos mais de 70 bairros escolham como as verbas doadas serão gastas na recuperação de fachadas, calçadas. Atualmente, cerca de 30 mil casas estão sendo reconstruídas, e dezenas de milhares serão, a partir de setembro.

A demora reflete na percepção das pessoas. Uma recente pesquisa do Instituto Gallup mostrou que 56% dos residentes acham que Nova Orleans ainda não voltou ao normal, mas, um dia, voltará. No entanto, para 26%, a normalidade pré-Katrina nunca voltará. O número de alunos matriculados nas escolas caiu de 60 mil (antes do furacão) para 20 mil. Se antes da tragédia 100% das escolas funcionavam, hoje 54% estão abertas.

Mas os ingressos para a peça ¿I'm Still Here, Me!¿ (¿Eu ainda estou aqui!¿), em cartaz no teatro Le Chat Noir, estão esgotados. Na obra, o ator Rick Graham interpreta vários personagens que sobreviveram ao Katrina, e vivem em Nova Orleans. Da platéia, quando perguntada sobre sinais de recuperação da cidade, uma jovem mãe grita: ¿Já podemos encontrar babás!¿ Nova Orleans prova, mais uma vez, que é uma cidade que consegue rir de seus problemas. E que tem esperança.