Título: VIVENDO SEM ÉTICA
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 26/08/2006, Opinião, p. 7

Oencontro do presidente Lula com intelectuais, no Rio de Janeiro, foi amplamente comentado nas Cartas dos Leitores, devido a algumas definições surpreendentes, para não dizer assustadoras. Para o compositor Wagner Tiso, por exemplo, a questão da ética não é importante. Disse ele: ¿Eu não estou preocupado com isso, estou preocupado com o jogo do poder. Não estou preocupado com ética do PT, ou com qualquer tipo de ética. Para mim, isso não interessa.¿ Tiso foi coadjuvado pelo ator Paulo Betti, que explicou, didático: ¿Política não existe sem mãos sujas. Não dá para fazer sem botar a mão na m ...¿

Não sei se esse é o pensamento majoritário do PT. Talvez não seja. Mas é sem dúvida o pensamento de muitos pequenos maquiavéis que consideram ser a política simplesmente o jogo do poder.

Há uma certa relação entre essa postura e um velho tipo de esquerda para quem falar de ética era evocar princípios burgueses. Para essa filosofia, a práxis era tudo; e o pensamento resultante era o de que os fins justificavam os meios (tese, aliás, defendida no encontro dos intelectuais pelo produtor Luis Carlos Barreto).

Pode-se supor ¿ ou desejar ¿ que existe esquerda para além desse beco sem saída. Ajudaria, neste sentido, uma reflexão sobre o mais espetacular acontecimento político das últimas décadas: o colapso da União Soviética. Essa reflexão, sempre adiada, contribuiria bastante para remover um pouco do entulho que ainda nos entope o horizonte.

A URSS era uma potência, em todos os sentidos. Basta ver como a sua sucessora ¿ a Rússia de todos os tempos ¿ conseguiu safar-se de uma crise abismal, simplesmente fazendo uso do dinheiro do petróleo. A velha URSS caiu sem um tiro, sem um empurrão de fora: simplesmente desfez-se por dentro, como um castelo de cartas. E por quê? Ouso afirmar que por calamitosa escassez de ética. A ética, ali, tinha sido arquivada como velharia capitalista. Era tudo como quer o nosso Wagner Tiso: um pouco de economia, mas, sobretudo, jogo de poder em doses cavalares.

Antonio Callado, em outros tempos, cunhou uma frase definitiva: regimes monolíticos costumam produzir sucessões neolíticas. Tudo, na velha URSS, era o jogo do poder. Malenkov perdeu de Kruschev porque não percebeu que era melhor ser secretário-geral do Partido do que primeiro-ministro. Kruschev foi derrubado porque tinha uma personalidade que não combinava com o aparelho burocrático. Mas Gorbatchov foi derrubado porque ninguém mais agüentava aquilo: as aulas tediosas de marxismo-leninismo; o sistema em que os funcionários do partido comiam, moravam e bebiam melhor do que os outros. Sobretudo, ninguém mais agüentava a absoluta falta de ética e de verdade.

Aqui no Brasil, dir-se-á que o atual presidente está reeleito porque pensou nos pobres, e criou o Bolsa Família. Mas não se constrói nada, num país, pensando apenas numa classe. A classe média é a massa crítica de qualquer nação; é a consciência crítica, é parte indispensável da vida política. E hoje ela anda num desânimo de dar dó, sufocada tanto no moral como no material. Querer construir um país sem a classe média é como imaginar um corpo que só tivesse pés, pernas e cabeça.

O mais triste, nessa história, é que podia ter sido diferente. O presidente Lula, ao se eleger, não era importante apenas por ser um operário que chegou ao poder; mas também, ou sobretudo, porque tinha criado um partido de bases trabalhistas. O partido anda, agora, escondido pelos cantos, de cabeça baixa, virtualmente excluído da propaganda oficial. O presidente mostra-se arrogante no desprezo pelas oposições, e por qualquer questionamento de natureza ética. Ele nada viu, de nada participou, não tem explicações a dar. Isso pode ganhar uma eleição ¿ com a ajuda da fraqueza dos adversários. Mas nessa direção, não estamos construindo nada.

Na Roma antiga, quando a corrupção começou a se alastrar, houve um senador chamado Catão que quis chamar os políticos às falas. Foi considerado louco, ingênuo, etc. etc., porque o poder do Império romano aumentava a olhos vistos, com ou sem corrupção. Um dia, os bárbaros só precisaram pular o muro para conquistar uma sociedade que apodrecera por dentro.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.