Título: 'Por que sobrevivemos?'
Autor: Ludmilla de Lima/Bernardo Mello Franco
Fonte: O Globo, 30/08/2006, O País, p. 10

Intelectuais e artistas tentam responder à pergunta de Lula sobre seu favoritismo depois de tantos escândalos

Carisma, identificação com os pobres, Bolsa Família e incompetência da oposição. Para intelectuais e artistas ouvidos pelo GLOBO, essas são as principais explicações para a sobrevivência política e o favoritismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - que se comparou na segunda-feira com outros governantes que, diante de crises, foram afastados do poder. Hoje, segundo os institutos de pesquisa, o petista seria reeleito no primeiro turno.

O afastamento de aliados como os ex-ministros José Dirceu (Casa Civil) e Antonio Palocci (Fazenda), responsabilizados por denúncias que não chegaram ao gabinete presidencial, é apontado pelo filósofo Roberto Romano como causa da popularidade de Lula.

- O presidente salvou-se ao jogar os velhos companheiros na rua da amargura - resume o professor de Ética Política da Unicamp.

Para a socióloga Maria Victoria Benevides, da Universidade de São Paulo (USP), a popularidade do presidente reflete a aliança do carisma com o investimento maciço em programas sociais como o Bolsa Família. Segundo a professora, que integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o presidente conseguiu desvincular-se das denúncias de corrupção ao se dizer apunhalado pelas costas por aliados.

- Esse discurso funcionou, apesar do desgaste com a classe média. Na hora da aritmética, quem decide a eleição é o povão - analisa a socióloga, que continua filiada ao PT, mas se diz deprimida com o cenário político.

'Ele se esquivou como um boxeador'

O sociólogo Ricardo Antunes, também da Unicamp, acusa o presidente de ter trocado a sobrevivência política com um pacto com a elite financeira - o que, segundo ele, contrariou o projeto alternativo que o PT defendia antes de chegar ao poder.

- Lula sobreviveu, mas o PT desapareceu como partido pluralista e de esquerda. Tornou-se uma legenda mandonista, capaz de fazer alianças com todos os setores - diz Antunes, que militou no partido durante 21 anos mas decidiu filiar-se ao PSOL em 2004.

O ativista político Celso Athayde, da Central Única das Favelas (Cufa), atribui a força eleitoral do presidente ao carisma e à aprovação popular das políticas compensatórias.

- Apesar de tudo, Lula é a cara do povo brasileiro e dos pobres: é verdadeiro e faz coisas que ajudam os pobres, que nunca tiveram tantas oportunidades - diz.

Para o documentarista Silvio Tendler, o presidente mostrou habilidade política ao barrar as tentativas da oposição de encurralá-lo no auge dos escândalos de corrupção.

- Ele conseguiu se esquivar como um boxeador e agora vai ganhar por pontos - resume.

'Apesar de tudo, é a cara do povo brasileiro'

CELSO ATHAYDE (Central Única das Favelas - Cufa): "Em primeiro lugar, trata-se de um fenômeno inexplicável e, se tivesse explicação, eu diria que apesar de tudo é a cara do povo brasileiro. Sinergia e simbiose do povo com a autoridade pública, apesar de eu mesmo me questionar às vezes sobre isso. Porque é verdadeiro e faz coisas que ajudam o pobre inegavelmente. Porque nunca os pobres estiveram a nível nacional com tantas oportunidades e acessos. Porque é diferente, arcaicamente moderno. Porque abre espaços para que os brasileiros e brasileiras possam ser felizes. Não declaro voto no Lula, mas não posso negar o inegável".

'O mais importante não é sobreviver'

GABRIEL, O PENSADOR (rapper): "O mais importante não é sobreviver, não é duração do presidente no poder. Mas o que ele deixa na história da política. Ele tem que se preocupar com isso. Se ele tiver um outro mandato, o mérito será fazer o país mudar, e uma das mudanças mais importantes que temos que ver acontecer é a diminuição da impunidade. A corrupção não pode ser tolerada em nenhum governo. Não é uma coisa que começou agora com o Lula, mas a gente esperava dele o combate à corrupção. E não houve. Ao contrário, houve uma tolerância, que não combina com a sua história."

'Quem decide a eleição é o povão'

MARIA VICTORIA BENEVIDES (socióloga): "Os programas sociais e a identificação profunda com o povo garantiram a sobrevivência do presidente depois da crise do mensalão. Lula conseguiu descolar sua imagem do escândalo dizendo-se apunhalado pelas costas. Esse discurso funcionou, apesar do desgaste com a classe média e com o funcionalismo público, que também estão insatisfeitos com a reforma da Previdência e o aumento da carga tributária. Mas, na hora da aritmética, quem decide a eleição é o povão. O presidente está certo ao dizer que o pragmatismo é necessário, mas jamais aceitarei a máxima de que os fins justificam os meios."

'Presidente jogou seus companheiros na rua da amargura'

ROBERTO ROMANO (filósofo): "Lula soube jogar seus companheiros na rua da amargura, como fazem todos os poderosos. Afastou José Dirceu, Antonio Palocci e José Genoíno, que não o responsabilizaram pelos escândalos. Lula diz que os companheiros erraram, mas quem errou foi ele. Ao eleitor, parece que toda a bandalheira política está no Congresso, não no Palácio do Planalto. Além disso, o presidente conta com a oposição que todo governante pediu a Deus. Agora caminha para os braços do PMDB num eventual segundo mandato, já que os partidos do mensalão (PTB, PL e PP) não se mostraram confiáveis."

'Os tucanos não quiseram arregaçar os punhos de renda'

LUCIA HIPPOLITO (cientista política): "Lula sobreviveu graças à incompetência da oposição, que não fez o dever de casa e assistiu às CPIs sem ler os documentos necessários. Os tucanos não quiseram arregaçar os punhos de renda e esperaram que a imprensa fizesse o serviço deles. Assim, com Lula desmoralizado, o poder cairia de volta no colo do PSDB. No horário eleitoral de Geraldo Alckmin, o Brasil não teve corrupção nos últimos quatro anos. Isso legitima a visão de mundo do presidente. Parece que todos compraram o mito criado por Duda Mendonça de que quem bate perde. O PT não existe sem Lula, mas ele demonstrou que pode existir sem o PT."

'A sobrevivência passa por medidas favoráveis à população mais pobre'

RICARDO ISMAEL (cientista político da PUC-RJ): "A sobrevivência do Lula em termos políticos passa por diversas medidas tomadas favoráveis à população mais pobre, como aumento do salário-mínimo e expansão do Bolsa Família.Tudo isso teve um impacto positivo no último ano. Outra coisa é que o Lula tem o apoio de entidades como a CUT, UNE e MST. São movimentos sociais que na hora H prestaram solidariedade ao presidente. Há ainda um aspecto que o favoreceu, que é a dificuldade da oposição de encontrar uma liderança que unificasse o discurso. E encontrar uma proposta de governo que pudesse ser oferecida como alternativa ao Lula. Não vejo novidade no que o presidente disse. Ele falou um pouco mais porque o público era diferente."

'Como legenda de esquerda, o PT desapareceu'

RICARDO ANTUNES (poeta): "Lula curvou-se aos interesses dominantes no país. Foi eleito com um projeto alternativo, mas desenhou uma arquitetura política que beneficiou o sistema financeiro. Desvertebrou o PT e seu compromisso com a mudança da estrutura econômica brasileira. Lula costuma dizer que a corrupção sempre existiu no Brasil, mas em seu governo foi a primeira vez em que foi utilizada pela esquerda. O presidente acredita que, se errou, foi por não ter ampliado ainda mais o leque de alianças com a direita. No poder, o PT foi tragado pela união do governo com os partidos do mensalão e dos sanguessugas. Como legenda de esquerda, desapareceu."

'Ele conseguiu se esquivar como um boxeador'

SILVIO TENDLER (cineasta): "O governo dele sobreviveu porque toda campanha midiática feita contra ele foi contraproducente, acabou sendo favorável a ele. Porque nunca nenhum governo foi massacrado como o dele, que encarou tantas CPIs. Ao mesmo tempo, ele deixou sangrar, a PF está prendendo rico e pobre. A estratégia utilizada pela oposição contra ele foi equivocada. A oposição queria encurralar, levar o Lula às cordas e não ter um outro round. Mas ele conseguiu se esquivar como um boxeador e agora vai ganhar por pontos. E houve algumas escolhas infelizes da oposição; não sei se escolheu o melhor candidato para dar combate."

'Lula foi poupado pela oposição'

MARCUS FIGUEIREDO (cientista político): "Lula exagera nas comparações históricas. O que aconteceu com ele nos últimos quatro anos não chega perto do que a UDN fez com Juscelino Kubitschek, que enfrentou duas rebeliões militares e a oposição radical de Carlos Lacerda. Lula foi poupado pela oposição, que não o responsabilizou diretamente pelos escândalos nem pediu seu impeachment nas CPIs. O PSDB e o PFL foram críticos na retórica, mas amenos na ação política. Não conseguiram colar a imagem de Lula às denúncias do mensalão. Agora o presidente tem apoio da elite econômica e caminha para a reeleição ancorado nos programas sociais."

'Não se pode admitir comunidade humana sem ética'

MARIA CELINA D'ARAÚJO (cientista política): "A comparação com Getúlio Vargas é um discurso eleitoreiro e não resiste a uma análise histórica. Vargas governou durante a Guerra Fria e enfrentou forte oposição do empresariado e da imprensa. Perto disso, Lula voou em céu de brigadeiro nos últimos quatro anos. Getúlio também se dizia vítima dos poderosos que não queriam que ele governasse para os humildes, mas teve adversários muito mais combativos, inclusive nas Forças Armadas. Hoje os militares estão nos quartéis e Lula tem a confiança do empresariado, que está ajudando sua campanha à reeleição. Se a imagem de defensor dos pobres render dividendos eleitorais, ele continuará investindo nela."