Título: UMA TROCA DE FAVORES NAS URNAS
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 03/09/2006, O País, p. 3

Empresas que prestam serviços ao Estado monopolizam doações de campanha

Um grupo restrito de empresas privadas sustenta as finanças legalizadas ¿ o caixa um ¿ de candidatos e partidos políticos brasileiros.

O país mantém cinco milhões de empresas registradas, porém menos de duas mil foram responsáveis por 75% do dinheiro lícito que irrigou as campanhas para a Câmara dos Deputados nas últimas três eleições (1994,1998 e 2002). O fluxo de recursos nas eleições é monopolizado por esse pequeno grupo de empresas ¿ na maioria, fornecedores de bens e serviços ou com atividades sujeitas à regulação do Estado.

Foi o que constatou o pesquisador David Samuels, do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota (EUA). Há mais de uma década ele estuda o mecanismo de financiamento eleitoral brasileiro, a partir das informações oficiais pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um resumo de suas pesquisas integra o livro ¿Gasto público menor e mais eficiente¿ (Editora Topbooks, vários autores), que chega em breve às livrarias.

Aposta em privilégios

Para Samuels, esse pequeno universo de contribuintes de campanha indica que não são as ¿idéias¿ que estão instigando o custeio eleitoral ¿ os recursos é que estão induzindo a postura do candidato eleito. É o contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde o fluxo de recursos tem relação com idéias ou causas políticas dominantes na cena local, como controle de armas e aborto.

¿ No Brasil, a maior parte do financiamento de campanha tem motivação econômico-financeira, na qual o dinheiro é trocado por futuro serviço governamental ¿ comenta. ¿ Os financiadores esperam receber, em troca do dinheiro, um serviço específico que só um agente público pode executar.

Essa postura de parcela expressiva dos contribuintes empresariais foi detectada em pesquisa realizada depois da última eleição geral pela Transparência Brasil, em parceria com o grupo Kroll (veja quadro ao lado).

Uma em cada quatro empresas participantes informou já ter sido compelida a contribuir com partidos e candidatos.

Dessas, 58% declararam o hábito de promover uma negociação prévia, e explícita, para trocas de favores. E mais: 77% confirmaram a percepção de que o financiamento eleitoral é uma forma de garantir privilégios no setor público.

Na rotina dessas companhias¿ a maioria dos setores industrial e de serviços ¿ a contribuição eleitoral é um meio de fazer negócios e quase tão importante quanto dar presentes, oferecer jantares e viagens a administradores públicos, admitido por 86%.

Como os financiadores são poucos e costumam doar muito, resulta uma grande dependência.

Metade dos candidatos recebe mais de 50% dos recursos de campanha de uma única fonte empresarial, informa o pesquisador Bruno Speck, do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Campinas. Ele analisou o caixa um de quase cinco mil candidatos a deputado federal e estadual na eleição passada (2002). É a realidade ¿nua e crua¿, diz.

¿ Quer saber quem paga a eleição no Brasil? ¿ provoca o deputado Alexandre Cardoso (PSB-RJ), relator do projeto de reforma política na Câmara, depois de uma temporada nos arquivos do TSE, em Brasília. ¿ Anote aí: nos municípios, são as empresas de limpeza e ônibus. Nos estados, são as empreiteiras, as de prestação de serviços e as concessionárias. Já no Legislativo federal e na Presidência da República, são os bancos, as seguradoras e as grandes empresas industriais.

As pesquisas e o senso comum indicam a troca de favores, mas é difícil comprovar ¿ ressalva Bruno Speck, da Unicamp. ¿ Você pode até fazer aproximações estatísticas entre doações e contratos com o setor público, porém é muito complicado mostrar fatos que possam redundar em processos na Justiça.

Há conseqüências práticas e diretas para os Tesouro, acrescenta David Samuels, da Universidade de Minnesota.

¿ As contribuições chegam sob uma expectativa de rendimento financeiro futuro. O que entra no cofre das campanhas pode acabar saindo dos cofres do setor público sob a forma de compras a preços elevados, aquisições desnecessárias, contratos e regulação desfavoráveis, subsídios creditícios, ampliação de empregos públicos, etc.

Exemplifica com as sucessivas renegociações de dívidas agrícolas em bancos oficiais, realizadas desde 1995.

¿ A chamada bancada ruralista, fortemente financiada pelas organizações do setor rural, joga forte pressão política nesse tipo de projeto ¿ diz Samuels. A atual renegociação, posta em marcha pelo governo Lula, poderá afetar as contas dos bancos oficiais em R$8,4 bilhões.

Outro exemplo, segundo ele, é o da "bancada da bala", financiada pelo setor de armas.

¿ Estou certo de que uma análise das emendas ao Orçamento e de sua execução vai indicar conexões ¿ acrescenta.

O alto custo da eleição

Os dados do caixa um das campanhas informados à Justiça não expressam a realidade do financiamento eleitoral, como demonstram os escândalos recentes. Porém, constituem uma referência informativa sobre as fontes, o fluxo e a partilha dos recursos lícitos.

Revelam, entre outras coisas, que as eleições brasileiras estão entre as mais caras do planeta. E, também, mudanças no padrão de distribuição do dinheiro entre forças políticas. Isso pode ser percebido pelo aumento constante da participação empresarial no caixa do PT de Lula.

Nas eleições de 1994 e 1998, foi o partido político que menos dinheiro lícito recebeu de empresas. Sustentou suas campanhas presidenciais com a coleta de contribuições individuais, na proporção de R$70 para cada R$100 em caixa.

O quadro mudou durante a disputa presidencial de 2002, vencida por Lula. A participação de empresas na sustentação do caixa um petista saltou de 25% para 43,3%. É provável que nesta eleição as companhias assumam a liderança no financiamento lícito do PT.

Mas há quem desconfie das previsões de receitas anunciadas por candidatos e partidos na atual campanha.

¿ Alguns deputados já avisam que gastarão mais de R$1 milhão, para receber R$580 mil de salário, em quatro anos. É um investimento esquisito. Continuam, portanto, o caixa dois e os "recursos não contabilizados" ¿ disse o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), na semana passada.

Depois de ouvi-lo, um dos líderes petistas, Fernando Ferro (PE), subiu à tribuna da Câmara e lamentou:

¿ Infelizmente, sou inclinado a admitir que muitas vezes, aqui, aplicamos um verso do poeta português Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que finge que é mesmo dor/A dor que deveras sente". Poderíamos trocar a palavra "poeta" por "parlamentar" ¿ disse.