Título: TRÁFICO S/A
Autor: Antônio Werncek e
Fonte: O Globo, 03/09/2006, Rio, p. 26
Policiais corruptos ficam com dez por cento do faturamento das `bocas-de-fumo¿
Okern 0.3pt Na ponta do lápis, o tráfico de drogas nos morros emprega atualmente no município do Rio cerca de dez mil homens diretamente (o número pode ser muito maior, se incluídos os empregos indiretos), mas o faturamento está longe de alcançar as cifras que volta e meia a polícia costuma divulgar e que os próprios traficantes dizem desconhecer. Durante cerca de 15 dias, repórteres do GLOBO entrevistaram policiais, moradores de favelas, sociólogos e até traficantes para decifrar a estrutura econômica do tráfico nos morros, descobrindo o que todos os moradores de favela já sabem há muito tempo: para manter funcionando a ¿boca-de-fumo¿, o chefe do tráfico destina cerca de dez por cento do seu faturamento bruto a policiais corruptos. O arreglo (¿arrego¿) é pago semanalmente sobre a receita da venda de cocaína e maconha, as duas principais mercadorias dos traficantes do Rio.
¿ Se não tiver arreglo, nenhuma ¿boca-de-fumo¿ funciona no Rio. Os policiais passam a fazer incursões constantes ou fecham os principais acessos à favela. Eles implantam o que chamam de terror. Nenhum viciado é louco de subir para comprar num morro assim, com a polícia na ¿boca¿ ¿ diz um traficante do Rio.
O delegado Victor Cesar Santos, diretor da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Federal do Rio, com mais de dez anos de experiência no combate ao tráfico no estado, tem identificado nos últimos anos o que chamou de associação criminosa de policiais com os traficantes. Sem medo da repercussão da sua afirmação, ele garantiu que em alguns casos o dono da ¿boca¿ é o policial.
¿ O tráfico só funciona porque tem polícia envolvida. Sempre. Eu posso assegurar que, em praticamente todas as investigações aqui da Polícia Federal, tenho encontrado pelo menos um policial envolvido. Uma associação que passa pelo arreglo e vai até a participação efetiva do policial na atividade criminosa. São esses policiais corruptos que ajudam a levar a polícia ao descrédito, maculando a instituição a que pertencem ¿ diz o delegado.
Tráfico financia tudo no morro
Para entender como o tráfico funciona economicamente, a equipe de reportagem do GLOBO decifrou sua espinha dorsal. Ela tem o nome de ¿carga¿ (o saco que fica na mão do ¿vapor¿). É em torno dela que o traficante-chefe tira o seu sustento e de uma infinidade de outras pessoas, incluindo policiais corruptos: desde o menino que solta pipa, passando por policiais, até chegar ao traficante da quadrilha que está cumprindo pena nos presídios. O chefão financia tudo. Remédios, comida para o bando, festas na comunidade, bailes funk, enterros de moradores pobres, armas, drogas, munição, fogos e até pilha são pagos com o dinheiro da venda da ¿carga¿. Traficantes da quadrilha que estão cumprindo pena recebem mesada semanal na cadeia; e suas famílias (mulher e filhos) ganham ajuda de custo em dinheiro e cesta básica.
Geralmente uma ¿carga¿ tem 65 papelotes de cocaína ou 65 trouxinhas de maconha. O lucro é dividido da seguinte forma: o valor correspondente a cinco papelotes fica com o ¿vapor¿ (o vendedor); outros cinco vão para o bolso do ¿gerente-administrador¿ (segundo na hierarquia do tráfico); e cinco seguem para a conta do ¿subgerente¿ (terceiro na escala de poder, responsável pela guarda da droga).
O restante (o valor correspondente a 50 papelotes, no caso da cocaína) é entregue ao chefão, o dono do tráfico no morro. Com o dinheiro correspondente à venda dos 50 papelotes, o chefão destina dez por cento ao arreglo da polícia (pagamento a policiais corruptos que permitem o funcionamento da ¿boca¿). Normalmente o dinheiro é entregue aos policiais por uma pessoa sem envolvimento com o tráfico, um pombo-correio.
Muitas vezes o traficante-chefe também tem que arcar com as despesas de uma extorsão, quando alguém importante do bando é preso. Nesse caso, o criminoso não é levado à delegacia para ser autuado: ele fica em poder dos policiais até que o dinheiro de seu ¿resgate¿ seja providenciado pela ¿boca¿. Pagamento feito, traficante liberado.
A preparação da ¿carga¿ de cocaína segue critérios rígidos. Depois que a droga pura chega ao morro, ela é entregue ao ¿gerente-administrativo¿, homem de confiança do dono do morro. Ele é o responsável por levá-la a um local seguro onde ela é preparada, ou seja: recebe o ¿batismo¿, quando a cocaína pura é misturada a doses generosas de fermento em pó. O ¿batismo¿ obedece a certos critérios: na mistura um por um, por exemplo, os ¿endoladores¿ (funcionários que preparam os papelotes) acrescentam um quilo de fermento em pó para cada quilo de cocaína. Mas o ¿batismo¿ pode chegar a um por três, o que significa um quilo de cocaína pura para três quilos de fermento em pó.
Um papelote com um grama da droga misturada, pesado, é vendido por R$2. A ¿carga¿ (65 papelotes) é entregue ao ¿vapor¿ da ¿boca¿, que nunca fica sem trabalho. Ele é abastecido sucessivamente com outras ¿cargas¿. Tudo é anotado num caderno pelo ¿gerente¿ da ¿boca¿, que funciona como tesoureiro na estrutura do tráfico. Há ainda ¿cargas¿ de R$3, de R$4, de R$5, de R$10, de R$15 e de R$20. O material já embalado fica sob a responsabilidade do ¿subgerente-administrativo¿, que distribui entre os ¿vapores¿. Na ¿boca¿, cada ¿vapor¿ oferece aos consumidores sua ¿carga¿. Funciona como uma espécie de pregão ou feira-livre. Eles, como os empregados de qualquer empresa, disputam entre si quem vende mais. Quanto mais vender, mais o ¿vapor¿ ganha, em dinheiro e em status no tráfico.
A contabilidade dos traficantes
Para o pesquisador Marcelo Freixo, da ONG Justiça Global, a polícia e o tráfico são dois lados da mesma moeda. Ele diz achar que o envolvimento de policiais com traficantes já está institucionalizado e que a tão propagada banda podre da polícia já perdeu razão de ser:
¿ Não podemos mais falar em banda podre, o que existe é uma instituição estruturalmente corrompida e brutalizada. Não existe qualquer controle sobre a atuação policial nas áreas pobres da cidade. Em todas as favelas o que mais ouvimos é o quanto polícia e tráfico são lados da mesma moeda. Além do conhecido arreglo, são inúmeras as denúncias de policiais vendendo armas ao tráfico.
Segunda-feira passada, o delegado Fernando Veloso, titular da 9ª DP (Catete), na tentativa de prender o traficante Humberto Ferreira da Silva, o Beto, que atua nas favelas de sua jurisdição, acabou apreendendo uma preciosa peça da economia do tráfico do Rio: a contabilidade. Num caderninho minúsculo, em letras traçadas por mãos trêmulas, estavam todos os gastos dos traficantes da Favela Beira-Mar, em Duque de Caxias, reduto do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. No alto, aparece a relação das despesas de um fim de semana com o arreglo: R$5.800.