Título: Relato de uma dor
Autor: GABRIEL F. PADILLA
Fonte: O Globo, 07/09/2006, Rio, p. 20

Pai de jovem morta em acidente traça, em depoimento ao GLOBO, o retrato de sua perda

Domingo, dia 3 de setembro, às 6h, fui acordado por um telefonema avisando que minha filha, Ana Clara, havia sofrido um acidente de automóvel. Quem me ligou chorando muito foi Camila, uma grande amiga dela. Imediatamente liguei para o celular de Ana Clara e atendeu um oficial do Corpo de Bombeiros, que confirmou o fato. Desesperado, corri até local pensando o quanto minha filha poderia estar ferida, para que hospital talvez já tivesse sido levada, rezando para que não fosse grave. Mas, ao chegar ao local, me deparei com um cenário de horror! Parecia uma praça de guerra. O carro preto estava irreconhecível, semicalcinado e havia deixado um rastro de pedaços até sua parada total em uma árvore, que foi mortal. A violência da colisão não deixava dúvidas do excesso de velocidade, da imprudência, certamente da bebida.

Quatro corpos estavam prostrados no chão e um deles, infelizmente, era o de minha filha. Uma dor avassaladora, lancinante, me tomou por inteiro. Um pedaço de mim foi arrancado do meu peito, para sempre, ao ver minha filha inerte sob um plástico preto. Quem eu embalei com imensa alegria e amor na sala de parto, em sua chegada, agora estava sem vida em meus braços, na sua partida. Nada pode ser maior que a dor de ver um filho morto, pois foge à ordem natural da vida.

Ana Clara morreu de traumatismo craniano, mas seu corpo e seu rosto estavam preservados. Quando eu estava no local do acidente, sentado ao seu lado, segurando sua mão e acariciando seu rosto, ela parecia apenas estar dormindo, feliz por viver intensamente a juventude de seus 17 anos.

Na capela do cemitério, foi uma provação inimaginável ver minha eterna Princesa no caixão. Sua curta vida foi um relâmpago passageiro; e me entristeciam mais ainda a dor e o sofrimento da minha família. Meu filho mais velho perdeu uma irmã companheira e minhas pequenas filhas gêmeas, ainda sem compreender a morte, perderam o referencial da irmã mais velha. Quanto a nós, pais, foram-se os sonhos de ver crescer os filhos de nossa filha. Agora, nossa doce Ana Clara, que foi cremada, virou cinzas lançadas ao mar. Para quem viveu intensamente como ela, nada como a imensidão do mar como última morada.

Quem nos conhece, sabe o quão carinhosos, presentes e dedicados somos com nossos quatro filhos. Mas, por mais que se cuide, oriente e proteja, eles são como água nas mãos em forma de concha. Uma hora escorrem por entre os dedos...

Quando meu filho mais velho fez 18 anos, me apressei para que ele providenciasse tirar a habilitação, pois preferia vê-lo no banco do motorista, e não do carona. Isso porque sempre o alertei para os perigos da direção e não me cansava de recortar dos jornais e lhe mostrar notícias sobre acidentes de automóveis com jovens. E, mais importante do que alertar, nós, como pais, dávamos o exemplo de condução prudente. Nossos planos para Ana Clara eram os mesmos, tanto que sempre a buscávamos na saída das suas programações noturnas ou nos revezávamos com outros pais. Ansiávamos por vê-la no banco do motorista, mas o destino chegou antes.

Infelizmente, essa tragédia, que matou os cinco amigos e que tanto comoveu a cidade, virou mais um dado estatístico, no qual os jovens não acreditam, o que faz com que esses acidentes se repitam numa freqüência macabra. Os jovens que perdem a vida desta forma abrupta e trágica não têm esse direito. Não é justo o que fazem a si e a seus pais.

Eu e minha família estamos muito sensibilizados com a quantidade enorme de manifestações de pesar, solidariedade, cartões e flores enviadas a nós e através de nossos parentes, inclusive por pessoas que não conhecemos. É reconfortante estarmos no meio dessa corrente que emana tanto carinho pela enorme falta que nossa amada Ana Clara nos faz. Agradecemos de coração.

Ana Clara, Manoela, Joana, Ivan e Felipe são as manchetes da hora, como tantos outros já foram; e, infelizmente, outros jovens serão, enquanto não houver consciência de serem prudentes e responsáveis na direção.

* GABRIEL F. PADILLA é pai de Ana Clara, uma das cinco jovens vítimas do acidente de domingo na Lagoa.