Título: VOTO DA MÁ CONSCIÊNCIA
Autor: RICARDO AMARAL
Fonte: O Globo, 09/09/2006, Opinião, p. 7

Asessão de terça-feira na Câmara foi uma empulhação, pelo que os deputados fingiram ter aprovado, e um esbulho, pelo que de fato obraram. A pretexto de abolir o mau uso do sigilo nos processos de cassação, tomaram-nos, com a mão do gato, as prerrogativas de voto secreto previstas na Constituição. Jogaram flores para a platéia e um abacaxi para o Senado, onde o destrambelho terá de ser consertado. E abriram mão de fundamentos básicos da democracia e da República que não lhes pertencem, mas ao eleitor.

O voto secreto foi o refúgio do Parlamento contra a tirania do rei. Custou luta, sangue e vidas para ser instituído, preservado e, aqui e alhures, perdido, como bem sabe o presidente Aldo Rebelo. O sigilo democrático preserva o direito de divergir, quando é mais bruta a pressão, venha ela do rei, avassaladora, dos generais, da burocracia partidária, da Igreja, da imprensa ou até das ruas.

O sigilo do voto, nos casos constitucionais, não é prebenda de deputado safado, embora safadeza haja dentro e fora da casa. Ele é pressuposto de independência, nos momentos em que um poder da República ¿ justamente o mais vulnerável, por ser a expressão coletiva de decisões individuadas ¿ tem de defrontar-se com o Executivo ou, de forma indireta mas crucial, com o Judiciário.

Em três hipóteses o voto dos representantes é secreto. Primeiro, quando enfrentam veto presidencial a lei emanada do Congresso. Trata-se, por definição, de momento de confronto entre poderes, e faz-se necessário equilibrá-los. É também secreta a apreciação sobre os futuros embaixadores, por razões de Estado que ficam e pela mesquinharia que passa. E é secretíssimo, por todas as razões, o juízo individual dos parlamentares sobre os magistrados que um dia poderão julgá-los, e a nós.

Diferentemente de outros, nosso Legislativo se deu o direito de julgar seus próprios membros, motivo de quarta previsão, regimental, de voto secreto, fora a eleição das mesas. Sou dos que acham que para bandido há polícia; para réu, juiz e, para deputado, eleitor. Muitos consideram mais correto, ou mais eficaz, o julgamento político pelos próprios pares. Respeito a controvérsia.

O ¿controle transparente¿ da consciência dos deputados justificou o serviço completo, e a Câmara fez barba, cabelo e bigode do voto secreto. Jogaram fora a criança, a bacia e o sabonete, mas água suja ficou empoçada no plenário.

Consumada a doce abdicação, pergunta-se: quantos congressistas terão o despojamento cívico de enfrentar abertamente um veto presidencial? Quantos se animarão a expor a suspeição que pairar sobre indicados para representar o país no exterior? Quantos ousarão negar o voto a um futuro ministro do Supremo? E que juiz ¿ vejamos por esse lado ¿ poderá se declarar isento, em causa envolvendo senador, tendo sido público o voto da parte na sua indicação?

O placar da votação confirma a sabedoria dos antigos e prenuncia o efeito perverso da abdicação inconseqüente. Nem o mais santo dos Papas se elegeu pelo assentimento de 383 votos a zero, mas foi essa unanimidade ovina que consumou o liberticídio. ¿Nenhuma unanimidade é sincera¿, ensinava mestre Ayres da Matta Machado. Expostos todos ao arbítrio de certa opinião ¿ que por ser pública pretende-se às vezes infalível ¿, nenhum deputado ousou remar contra a maré, prestar homenagem pública ao discernimento íntimo.

Temo que o próximo passo, por coerência, seja abolir o voto secreto do eleitor. Depois que o TRE do Rio, no mesmo passo de carneiro, tentou cassar candidatura sem julgamento, não será surpresa encontrar na cabine um fiscal da moralidade, pronto a evitar, preventivamente, que o eleitor supostamente corrompido dê seu voto a potenciais sanguessugas.

Por não ter usado com sabedoria ritos do tribunal do júri no processo do mensalão, essa triste legislatura sucumbe agora ao pelotão de fuzilamento. Perdida a alma, entrega o corpo, de que não poderia dispor, ao farisaísmo de uns e à má consciência geral. Descanse em segredo.

RICARDO AMARAL é jornalista.