Título: INDÚSTRIA DA MORTE
Autor: GUSTAVO CARVALHO DOS SANTOS
Fonte: O Globo, 09/09/2006, Opinião, p. 7
Após uma tragédia como a morte de cinco jovens em um acidente estúpido, a sociedade, chocada, tende a procurar culpados e a buscar soluções mágicas para o problema da violência no trânsito, que mata mais de 30 mil brasileiros por ano. Esta estatística alarmante revela o tamanho do desafio e aponta para a necessidade do envolvimento de toda a sociedade em ações para aumentar a segurança e reduzir o número de mortos e feridos no trânsito. Somos todos responsáveis pelo problema; devemos todos agir ¿ cada um fazendo a sua parte ¿ para enfrentá-lo.
Os dados recentes apontam para um aumento no número de acidentes e de vítimas no trânsito, após o impacto causado pela aprovação do Código de Trânsito Brasileiro, em 1998. A queda inicial revela a força da legislação, que determinou ações integradas de educação e punição. Mas a sociedade começou a descobrir maneiras de driblar o código ¿ e, no momento em que a tragédia da Lagoa lança holofotes sobre os jovens motoristas, é importante destacar um aspecto da legislação para a formação dos condutores.
Determina o código que o candidato aprovado nos exames para tirar sua primeira habilitação receba apenas uma Permissão para Dirigir, com validade de um ano. O condutor só recebe a Carteira Nacional de Habilitação se, durante este primeiro ano ao volante, não tiver cometido infração gravíssima (como avançar sinal) ou grave (como andar em velocidade acima da permitida) ¿ nem reincidir em infração média (como parar sobre a faixa de pedestre). Foi a maneira concebida pelos legisladores para a avaliação dos novos motoristas ¿ jovens em sua grande maioria ¿ no enfrentamento dos desafios diários do trânsito.
Ocorre, entretanto, que são poucos os permissionários obrigados a refazer o processo de habilitação após o primeiro ano ao volante. Muitos jovens motoristas dirigem veículos de propriedade dos pais, que, ao serem notificados de uma infração, assumem a culpa para evitar que os filhos sejam punidos e obrigados a voltar à auto-escola. Também é comum que avós, parentes ou amigos assumam infrações com o mesmo objetivo. Essa impunidade tira responsabilidade do jovem motorista, que não vê o descumprimento das leis do trânsito como ameaça à sua habilitação. E, mais, de ser submetido outra vez a todos os exames para obter a carteira.
Este é apenas um caso que mostra a responsabilidade da sociedade na educação dos jovens motoristas. Há necessidade de uma conscientização de que o Código de Trânsito deve ser respeitado para preservar vidas ¿ e não apenas para evitar multas. Aos órgãos executivos do trânsito cabe descobrir novos caminhos para a educação e conscientização de motoristas e pedestres. As campanhas educativas são eficientes ¿ o uso, hoje praticamente universal, do cinto de segurança é prova disso ¿ mas é necessário refletir sobre formas de alcançarmos mais. Deve-se ainda fazer a ressalva de que as campanhas servem, principalmente, para reforçar a necessidade de observância das normas de trânsito já aprendidas pelos motoristas nas auto-escolas.
O Detran-RJ, por exemplo, faz campanhas com jovens em bares e restaurantes, distribui panfletos nas estradas, treina professores para multiplicar os ensinamentos sobre segurança, e nossos próprios agentes de educação estiveram em mais de 300 escolas em 2005. Os números ainda alarmantes mostram, entretanto, que devemos ter a preocupação de investir mais ¿ responsabilidade compartilhada com o Denatran, que recebe 5% de todas as multas para campanhas de educação, e com as prefeituras, que são os principais autuadores ¿ no Rio, 80% das multas são aplicadas pelos órgãos municipais ¿ e também estão obrigadas pela legislação a trabalhar pela educação e a segurança no trânsito.
Mas não devemos nos iludir: só o empenho dos órgãos executivos e a conscientização da sociedade não serão capazes de reverter as estatísticas se os outros poderes não tiverem esta mesma preocupação com a segurança no trânsito. Legislação ainda recente, o Código de Trânsito vem sendo contestado no Legislativo e no Judiciário por ações, muitas patrocinadas pelo Ministério Público e por associações de consumidores, que buscam amenizar as punições aos infratores e cancelar ou suspender multas.
O choque pela morte prematura de cinco jovens deve servir para que cada um ¿ na sua casa, na universidade, no volante de seu carro, no seu bar ou na sua boate, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ¿ pense no que pode fazer para evitar novas tragédias. Em como educar e como conscientizar ¿ e também em como punir, pois não podemos ceder à tentação de perdoar as infrações. Cada multa perdoada revolta quem cumpre as leis no trânsito e quem paga suas multas sem reclamar. Cada anistia transmite à população uma sensação terrível de impunidade. As contestações às multas colocam em um mesmo patamar bens jurídicos distintos e incomparáveis: o direito individual de infratores contumazes e a segurança da coletividade. Perdem o foco ao defender o direito de notificação de um condutor com inúmeras multas em detrimento de sua punição em benefício da sociedade. Falam em indústria das multas quando o que existe é a indústria da morte, que atinge a toda a sociedade e exige o envolvimento de todos para enfrentá-la.
GUSTAVO CARVALHO DOS SANTOS é presidente do Detran-RJ.