Título: Mutações
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 10/09/2006, O GLOBO, p. 2

Uma interrogação ficou no ar quando as pesquisas mostraram o favoritismo de Lula entre os mais pobres e os menos instruídos, contrariando todas as previsões e todas as análises, tudo o que foi dito e mostrado por todas as mídias e formadores de opinião. A ela soma-se agora outro inusitado: contrariando a tradição, ¿os de baixo¿ começam a influenciar eleitoralmente ¿os de cima¿. Pode ser novidade na política mas no comportamento e na cultura, há algum tempo ¿a periferia¿ dita moda e faz escolhas por conta própria.

¿Pelo movimento clássico, as tendências dos setores mais ricos e escolarizados se espalham pelo restante da sociedade. Ao que parece, nesta eleição ocorre o contrário¿, disse Mauro Paulo, diretor do Datafolha, referindo-se à última pesquisa do instituto que dirige. Lula, que tinha voto sólido entre os mais pobres e menos instruídos, perdia feio para Alckmin entre os que têm curso superior e ganham mais de dez salários mínimos. A diferença chegou a ser de 9 e 13 pontos percentuais, respectivamente. Na pesquisa de terça-feira, eles apareceram tecnicamente empatados. Lula com 35% e Alckmin com 38% entre os daquela faixa de renda. Entre os de curso superior, 36% para o tucano e 34% para Lula.

Na sociologia barata de políticos e jornalistas, referimo-nos ao processo ¿clássico¿ como ¿efeito pedra no lago¿. A pedra jogada no centro começa a produzir ondas concêntricas que se propagam até cruzar toda a superfície social e bater na margem (ou na base da pirâmide). As Diretas-Já foram assim, o ¿Fora Collor¿ também. E também a eleição/reeleição de FH, bem como a de Lula em 2002, quando o povão foi o último a lular. Há uma outra teoria, a da cascata. Por ela, um jorro vindo do ¿alto¿ desce pela pirâmide, contaminando opiniões até formar uma tendência. Nem uma nem outra parecem estar funcionando. O voto está sendo decidido por parâmetros que ultrapassam a retórica da ética, o que não significa negá-la.

Eleitoralmente, tivemos amostra dessa autonomia do eleitorado no plebiscito de 2005: apesar da frente ampla em favor do sim, que teve o apoio de quase todos os partidos, do governo, de ONGs, de intelectuais, religiosos e artistas, o povo votou não.

O tropel da mudança na formação da mentalidade e dos valores simbólicos estamos ouvindo há algum tempo. Nos anos recentes, a periferia, a favela, os mais pobres e os menos instruídos têm produzido vigorosas manifestações, culturais e comportamentais, que vão se impondo ao gosto da classe média, aos brancos e mais instruídos. O rap, falando rítmica e quase rancorosamente da favela, da questão racial e da desigualdade, ganhou a indústria fonográfica. O funk, vulcânico e erótico, atrai para seus bailes as moças da classe média. O AfroReggae é aplaudido por seu trabalho em Vigário Geral, assim como o Nós do Morro e outros grupos culturais que nascem lá onde a mercadoria cultural era só consumida, nunca produzida. Nesse mesmo caldeirão cabe a reabilitação da música sertaneja, até há tão pouco tempo exilada do mundo urbano, confinada ao campo e ao interior. Os mesmos adolescentes que ouvem O Rappa vão também a shows das duplas de sucesso. Assimilado, o gênero abriu caminho para um filme vitorioso como ¿2 filhos de Francisco¿. Num país onde a classe média idolatra as grifes, a moda da Daspu desfilou no Rio Fashion Week, no MAM, e foi aplaudida. Uma artista fortemente intuitiva e sensível como Regina Casé tem mostrado, naquele quadro do ¿Fantástico¿, a vida e a cultura da periferia. Tudo isso fala de uma quebra no modelo tradicional de formação de tendências e dos bens simbólicos.

E não apenas nas favelas e periferias urbanas, mas também lá no Brasil profundo. O axé music baiano é um fenômeno mas a Bahia sempre ditou moda musical. Quem vai ao Amazonas surpreende-se com a força da ¿Toada¿, a música-guia dos bumbás, que fazem a festa de Parintins. Em Belém, o carimbó renasceu misturado a outros ritmos e tem força.

Heloisa Buarque de Hollanda, talvez a mais arguta estudiosa da cultura popular brasileira, discorrendo sobre tudo isso diz:

¿ Foi-se o tempo em que os intelectuais é que davam régua e compasso aos excluídos. Hoje, a periferia está formando, ela mesma, seus intelectuais orgânicos.

Todas essas coisas têm acontecido ao largo da política e dos partidos. Expressam, quase sempre, iniciativas de comunidades que nada esperam do Estado, vão à luta. Mas têm, em comum com o movimento eleitoral indicado pelas pesquisas, o descolamento em relação ao processo tradicional de formação da opinião. O eleitor anda tão solto, tão dono de si, que está fazendo picadinho das alianças e dos partidos. As pesquisas para governador mostram que, se ele vota em Lula, nem por isso vota nos candidatos da mesma coligação. Faz sua chapa como bem lhe interessa. Alguma coisa nova sairá deste caldeirão, seja lá o que for.