Título: Uma mistura explosiva
Autor: Carla Rocha
Fonte: O Globo, 10/09/2006, Rio, p. 24
Álcool, jovens e carros se encontram em portas de boates e postos de gasolina nas noites do Rio
Oelixir da noite, uma mistura de vodca com Sprite, é bebido num copo grande do Bob¿s. Nos intervalos, uma latinha de energético. O papo inteligente do estudante de direito Filipe Trino, de 20 anos, no entanto, nada tem a ver com as muitas garrafas que esvaziou e deixou no chão, num posto de gasolina em Ipanema. Talvez ele próprio não se dê conta de que a eloqüência é toda sua. Apesar de sua inteligência, Filipe ¿ que, na quinta-feira de madrugada, fazia discurso contra a hipocrisia e debochava de si mesmo fazendo um 4 para provar que estava ¿legal¿ ¿ acabou se despedindo de mais uma noitada, viajando de carona no carro de amigos igualmente alcoolizados. Isso tudo, quatro dias depois de cinco jovens morrerem num trágico acidente de carro na Lagoa.
Eram 3h quando ele desfiou seus argumentos contra a generalização.
¿ Essa conversa de que o jovem sai, bebe muito e bate com o carro do pai voltando para casa é hipócrita. Se, como mostram as estatísticas, uma parte dos acidentados é de jovens, eu pergunto: e a outra parte? Só pode ser de adultos que bebem e batem com o carro. É errado generalizar ¿ diz ele, primo distante de outro Felipe, um dos cinco jovens que morreram no acidente da madrugada de domingo passado.
Nas portas de boates e em postos de gasolina, na Zona Sul e na Barra da Tijuca, há sempre jovens bebendo latinhas de cerveja ou garrafinhas de Ice (bebida à base de vodca) no gargalo. É um ritual que começa na fila, antes de entrar na casa noturna. Há sempre ambulantes vendendo bebidas por perto. Não há ninguém, declaradamente, menor de idade. Com programas de computador como Photoshop, as falsificações de carteira de identidade são cada vez mais perfeitas. Todo mundo está ¿legal¿ ¿ é o mesmo que admitir que está bêbado, mas que se garante. Vendedor de uma loja num shopping de Niterói, Licinho, cara de garoto, mostrou a identidade para provar que tinha 22 anos.
¿ Bebo para relaxar, para ficar mais descontraído ¿ reconheceu, tímido, explicando que contava com o amigo Juan, que abriu mão de beber, para levar a turma de volta para casa, em São Francisco.
Consumo de ecstasy também é comum
É muito comum se adicionar ¿bala¿ ¿ comprimido de ecstasy ¿ à mistura explosiva da madrugada.
¿ Dá uma sensação incrível de liberdade, mas tomei poucas vezes ¿ disse outro jovem, pedindo para não ser identificado, enquanto tomava cerveja e aguardava para entrar na Baronetti, em Ipanema.
A explicação fácil para os acidentes ¿ de que os jovens se julgam invencíveis ¿ não pode ignorar que muitos sabem exatamente o risco que estão correndo, são articulados e estão em universidades. O subtexto é: qualquer campanha educativa para reduzir o número de acidentes de trânsito precisa, obrigatoriamente, falar a linguagem dessa juventude, muito mais esclarecida e com acesso cada vez maior à informação.
O juiz Guaracy Vianna, da 2ª Vara da Infância e da Juventude, diz que montou uma equipe para fazer palestras sobre o uso de drogas lícitas e ilícitas. Para ele, o melhor caminho é o da conscientização:
¿ Muitas vezes, eu dou ao jovem a possibilidade de trocar a punição por um tratamento contra o vício. Infelizmente, no caso do álcool, é mais difícil, porque é uma droga lícita e fico sem ter o que negociar. Nas classes mais favorecidas, principalmente, eles não bebem só cerveja, misturam uísque, todo tipo de destilado ¿ observa o juiz.
O Juizado da Infância e da Juventude sabe que energéticos alimentares, muito usados por freqüentadores de academias para estimular o ganho de massa muscular, principalmente por adolescentes, são potencializados com o uso da bebida. Usada simultaneamente com a droga, uma simples cerveja tem o efeito de várias doses.
Estudante de relações internacionais, Mariana Boena, de 22 anos, estava bebendo com a amiga Karina Iglesias, de 21, no Guapo Loco da Barra da Tijuca, desde as 20h de quarta-feira. Já passava de meia-noite e Mariana ainda segurava uma garrafa de cerveja, parecendo disposta a beber muito mais. O motivo: mineira de Tiradentes, ela veio para o Rio estudar e está se despedindo da cidade para uma temporada de intercâmbio na Itália. Normalmente, bebe e dirige, mas garante que a 20km/h.
¿ Fiquei tão chocada com o acidente da Lagoa que hoje resolvi deixar o carro em casa. Sabia que ia beber muito. Vou embora de táxi ¿ jurou Mariana, que misturou cerveja a uísque.
As histórias de acidentes de trânsito são muito comuns entre os jovens. Não faltam bons exemplos, vividos na própria pele, para desestimular a imprudência. Mas as experiências, mesmo quando são ruins, são encaradas como inerentes à diversão. Num posto de gasolina na Avenida das Américas, na Barra, Iggor e Marco Antônio, ambos de 23 anos, contaram em detalhes acidentes de carro que sofreram, alegando ter plena consciência de que o combustível foi o excesso de bebida.
¿ Eu estava dirigindo, voltando do Lord Jim Pub, em Ipanema, quando adormeci. Quando acordei, meu carro estava parado sobre o canteiro central da Avenida das Américas. Até hoje não sei o que aconteceu ¿ disse Marco Antônio, ao lembrar o acidente que sofreu há pouco mais de três meses.
Ao seu lado, Iggor, que estava num Fiat Marea, relatou em pormenores como é a sensação de perda de reflexos provocada pelo álcool. Um problema que causou um acidente há cerca de um ano e meio, quando ele voltava de uma noitada, no Leblon.
¿ Eu perdi aquela capacidade de olhar os três retrovisores, o que o motorista faz toda hora em fração de segundos. Só conseguia olhar um deles. Bati num poste. Estava chovendo. Minha mãe não se conformava. Eu não falei nada, mas claro que ela notou que eu tinha bebido demais ¿ recordou.
Dando preferência ao skate no momento, Piero de Martino, de 23 anos, tomava cerveja na Barra e resumiu o sentimento que o levou a abandonar o carro num estacionamento no Centro do Rio, após se dar conta de que estava bêbado.
¿ Pensei na minha família, nos meus pais e nos meus quatro irmãos. Mulher quando perde o marido é viúva; os pais, é órfã. Mas perder o filho é uma dor tão grande que não tem nome ¿ disse ele, que costuma pegar emprestado a Parati da mãe.
Conversando com os jovens que se divertem na madrugada carioca, regada a muita bebida, descobre-se que eles não gostam de ser vistos como irresponsáveis que se reúnem em grupos e desafiam os perigos. Como seus pais, eles continuam querendo ser únicos, respeitados. Para o bem e para o mal. Na Barra da Tijuca, um grupo, que sai toda semana no carro do pai de um deles, adotou o nome de Perda Total.