Título: MENORES SUSTENTAM FAMÍLIAS COM MALABARISMO
Autor: Marcelo Dutra
Fonte: O Globo, 10/09/2006, Rio, p. 33

Adolescentes que trabalham nos sinais de trânsito chegam a ganhar mil reais por mês para sustentar pais e irmãos

¿ Futuro? Ih, tio... não sei, não. Não tenho a menor idéia do que vou fazer. Mas acho que não vai dar pra ficar jogando bolinha pro alto, né?

O autor da frase, Edielson Santos de Souza, de apenas 14 anos, é o único provedor regular do barraco de palafita em que mora com o pai, catador de papel, a mãe, doente mental, e dois irmãos menores, parede-meia com um chiqueiro, na Favela do Xuxa, no Jacaré, Zona Norte do Rio. A rotina de subsistência de Edielson espelha o universo de pouco mais de cem jovens (o número é flutuante) com idades que variam entre 11 e 17 anos, que, como ele, ¿trabalham¿ seis dias por semana, exceto aos domingos, em sinais de trânsito, como malabaristas ou como ¿rolinhos¿ (aqueles que limpam os vidros dos carros que param nos sinais). Só assim eles conseguem algum dinheiro, principalmente na Zona Sul.

Secretário defende responsabilização dos pais

O universo desses jovens é retratado em pesquisa da Secretaria municipal de Assistência Social, que será concluída agora em setembro. De acordo com esses dados, e com levantamento do GLOBO, que ouviu cerca de 40% desses jovens, cada garoto arrecada com a atividade, em média, mil reais por mês. A arrecadação pode ser ainda maior, dependendo da necessidade ou da disposição de pedinte do menor.

Só para se ter uma idéia, um professor de ensino fundamental da rede pública estadual da 1ª a 4ª séries tem um piso salarial de R$431. Já o piso de um professor de ensino médio, da 5ª à 8ª séries, é de R$540,64.

¿ Diante desse valor, não há como competir. Nenhum projeto do governo pode concorrer com isso. Temos é que coibir os responsáveis que acabam empurrando os menores para essa vida na rua sabendo que eles terão mais chances de sensibilizar a população ¿ diz Marcelo Garcia, secretário municipal de Assistência Social.

O GLOBO acompanhou meninos que trabalham nos bairros de Copacabana e Botafogo, onde sua presença é facilmente notada. Assustados, apenas oito permitiram que repórteres fossem até suas casas para conhecer seus responsáveis legais. Apesar do valor que arrecadam, todos moram em barracos e vivem em péssimas condições econômicas devido à quantidade de pessoas desempregadas na família. Cinco deles já não tinham seus pais naturais e moram com avós, tios ou padrastos. Apenas dois vivem com o pai, a mãe e os irmãos. Um deles, de apenas 15 anos, mora sozinho, embora já tenha convidado a namorada, grávida e que também tem 15 anos, para compartilhar com ele o barraco que mantém com o dinheiro arrecadado na pista como malabarista.

A antropóloga Irene Rizzini, diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, que realizou uma extensa pesquisa sobre menores em condição de risco (que convivem com as ruas) diz que, normalmente, as histórias de vida dessas crianças são uma sucessão de perdas e rompimentos de laços afetivos, entremeados de episódios bruscos e violentos:

¿ Uma das palavras que eles mais usam é ¿maldade". Mas também falam em liberdade, comida, diversão e dinheiro. Isso diz muito sobre eles.

Todos os meninos ouvidos pelo GLOBO nos sinais moram na Baixada e retornam para casa diariamente, já que têm medo de pernoitar na rua.

¿ A gente conhece o caso da Candelária e vê um monte de coisa ruim acontecendo na pista, e não dá mole. Volto para casa tarde, mas dormir na rua é coisa pra mendigo ¿ diz Luan Diego Farias da Silva, de 15 anos, morador da Favela do Lixão, em Duque de Caxias.

Limpando vidros no sinal em frente ao Hotel Méridien, em Copacabana, Luan arrecada mensalmente três vezes mais que o padrasto estoquista, ajudando, assim, a manter a família de oito pessoas.

Repórteres visitaram dois grupos de meninos: um na Favela do Lixão, em Caxias, e outro na Favela do Xuxa, no Jacaré. No primeiro deles, a entrada de um repórter só foi permitida após sinal verde do tráfico.

Ainda segundo o levantamento da Secretaria de Assistência Social, os meninos não se enquadram nos padrões de classificação da chamada população de rua, uma vez que mantêm o vínculo social e familiar. A maior parte estuda ou estudava até bem recentemente. A maioria tem vergonha de dizer, na comunidade em que mora, que trabalha nos sinais.

¿ O ¿movimento¿ (os traficantes) ¿zoa¿ (ironiza) a gente dizendo que nós (sic) é otário e que podia tá numa boa, se quisesse. Aqui a gente não fica espalhando que faz ponto na pista. Fica no ¿sapatinho¿ pra não ¿pagar mico¿ (ser ridicularizado) ¿ diz um deles.

O secretário municipal de Assistência Social diz que a atividade desenvolvida por esses meninos é condenada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A prefeitura tem destituído o pátrio poder dos responsáveis por essas crianças com o auxílio das Promotorias da Infância e Adolescência, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Decav). De dezembro do ano passado até 12 de julho último, 111 menores foram encaminhados aos Centros de Acolhimento da prefeitura do Rio, para o projeto Família Acolhedora. Segundo a secretaria, todas as crianças buscavam acessar renda, ou seja, conseguir dinheiro em troca desses pequenos serviços na rua.

Ainda assim, a necessidade e disponibilidade de dinheiro fácil sempre os leva de volta à rua. É o caso de um grupo de garotos da Favela do Xuxa. Seis dias por semana, eles pegam dois ônibus em direção à Zona Sul da cidade para fazer malabarismos com bolinhas de tênis doadas por motoristas na Avenida Venceslau Brás, em frente à Praça Ozanan, em Botafogo.

Motoristas têm medo de serem assaltados

Os meninos são insistentes e às vezes acabam assustando os motoristas que param no sinal.

¿ Os maiores já assustam a ¿mulambada¿ (motoristas), que fica com medo de baixar o vidro do carro. Se for mulher, então, aí é que não rola mesmo ¿ diz um deles, enquanto levanta a camisa para mostrar que não está armado e, assim, conseguir a confiança de outro motorista (o gesto se repete sempre que o sinal fecha).

O promotor Marcos Moraes Fagundes, da 3ª Promotoria da Infância e da Juventude, que atua na Zona Sul do Rio, diz que a experiência mostra que os menores que praticam pequenos delitos são outros:

¿ Não é comum esses garotos cometerem infrações, já que pretendem voltar no dia seguinte. Em contrapartida, aqueles que passam a semana na rua e ficam inalando cola sustentam o vício com pequenas infrações. Esses, são perigosos.