Título: A imagem que perturba
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 10/09/2006, O Mundo, p. 46

Passados cinco anos do 11 de Setembro, começa a tomar forma o painel visual daquele que já é chamado de ¿o dia que nunca acabou¿. O mosaico talvez nunca se complete, tantos foram os flagrantes captados por celulares, câmeras digitais, máquinas descartáveis ou filmadoras caseiras em mãos de testemunhas involuntárias. Somados às imagens feitas por profissionais, esses instantes retalhados da história confirmam, em parte, a sombria constatação feita por Susan Sontag em seus escritos sobre fotografia: ¿A sociedade industrial transforma o cidadão num viciado em imagem e esta é talvez a forma mais irresistível de poluição mental.¿

Naquela manhã, foram milhões os pequenos gestos de desatino individual em meio ao inexplicável maior. Uma brasileira se põe a comprar todos os cartões-postais das torres que ruíam às suas costas; uma mãe jornalista teima em procurar o enquadramento perfeito para a foto na rua: a filha em primeiro plano, a Torre Norte cuspindo fogo, o vácuo deixado pela irmã gêmea que acabara de desabar; turistas e nativos disputam as últimas máquinas descartáveis num quiosque e saem clicando, em parte para camuflar o medo, em parte pela necessidade de congelar um mundo que acabava ali. Em meio a essa torrente de instantâneos, os meios de comunicação transformaram em ícones cenas de impacto universal e bravura individual.

Só que para a construção involuntariamente mitificada do 11 de Setembro, a imagem que melhor retrata esse ponto de inflexão da história precisou ser expelida ¿ senão da memória coletiva, ao menos de jornais e telas de TV americanos. É a imagem de um corpo que cai. Vale voltar a ela.

O salto parece ter sido decidido pelo homem, não pelo destino. Simetricamente alinhado à estrutura das duas torres ainda vivas, a verticalidade do corpo em queda aumenta a sua velocidade imaginada. O homem em queda é nosso elo mais íntimo com o horror. E se a fotografia é um segredo sobre um segredo, como dizia Diane Arbus, a foto do homem que cai é o retrato do segredo que o terror provoca. Como escreveu o americano Tom Junod, pode-se ver estoicismo ou resignação no gesto do homem em queda. O leque de leituras é infinito. Pode-se ver, inclusive, algo terrível: a liberdade.

O instante captado é preciso: 9h41m15s. A velocidade inicial do corpo foi calculada em 9,7 metros por segundo e chegará a quase 70 metros por segundo. Embora o homem esteja congelado na foto e a câmera não distinga se está vivo ou morto, é impossível deixar de imaginar a trajetória daquele corpo ao sair do foco da lente.

O fotógrafo Richard Drew, da agência de notícias Associated Press, estava cobrindo um desfile de modas para gestantes quando foi informado do choque do primeiro avião. Ao saltar da estação de metrô mais próxima, os dois prédios já estavam ardendo. Começou a mirar para o alto cada vez que alguém gritava ¿lá vai mais um¿ e captou a trajetória de cada corpo em queda em seqüências de 10 a 15 imagens. Levantamento feito pelo jornal ¿USA Today¿ computa mais de 200 saltos para a morte ¿ há fotos de trios em formação de pára-quedista, duos de mãos entrelaçadas, saltos solitários. Mas nenhum se tornou tão emblemático como o do homem de ponta-cabeça imortalizado por Drew.

O fotógrafo tinha chegado aos 54 anos sabendo que não lhe cabe filtrar o que fotografar nem prever o que se tornará histórico. Aprendeu cedo que esta tarefa só cabe à História. Drew tinha apenas 20 anos quando teve a jaqueta espirrada de sangue de Bobby Kennedy, o candidato à presidência dos EUA assassinado em 1968. O fotógrafo vinha imediatamente atrás do candidato no momento do atentado e seu reflexo foi pular em cima de uma mesa e não parar de clicar. Captou o olhar já moribundo de Bobby, captou Ethel debruçada sobre o marido implorando aos fotógrafos para baixarem as câmeras. As duas imagens se tornaram História.

Assim como até hoje se desconhece o nome do menino que se tornou ícone da sobrevivência nos campos de concentração nazistas, é possível que a identidade do Homem Em Queda também permaneça anônima. Ao longo destes cinco anos ele já foi erroneamente identificado algumas vezes. Melhor que permaneça anônimo.

Ao contrário da mídia européia, os jornais e a TV dos EUA desviam da foto deste homem enterrado na sua moldura. Talvez por ser a imagem mais perturbadora de soldado desconhecido de uma guerra ainda sem fim.