Título: ILUSÃO PRODUTIVA
Autor: XICO GRAZIANO
Fonte: O Globo, 12/09/2006, Opinião, p. 7

Maior assentamento rural do país, a fazenda Itamaraty reflete a tragédia da reforma agrária brasileira. Milhares de famílias, subjugadas por líderes de araque, sofrem com a sorte. O sonho de Olacyr de Moraes se transforma em pesadelo.

Localizada a 45km de Ponta Porã, MS, a enorme gleba, de 50 mil hectares, tornou seu proprietário o rei da soja. Mas o império agropastoril da Itamaraty começou a ruir em 1995. Entre 2001 e 2003, o Incra arrematou as terras. A transação foi caríssima, cerca de R$200 milhões.

Elaborado pelo Idaterra, órgão do governo estadual, o plano de desenvolvimento do assentamento Itamaraty chega a emocionar seu leitor. Tudo planejado. Mas a grande sacada reside na organização do labor: implanta-se o trabalho coletivo. Nas áreas comunitárias, irrigadas, será cultivada a solidariedade socialista. Será?

Como diria Joelmir Beting, na prática a teoria é outra. Passados quatro anos de experiência concreta, quem visita o assentamento Itamaraty teme pelo futuro. Os níveis de produção são baixíssimos, a qualidade de vida sofrível. Campeia a prostituição e a corrupção. Dá pena de ver.

Lotes são vendidos a céu aberto. No assentamento I, mais antigo, estima-se que 30% das terras já trocaram de dono. No assentamento II, recente, o comércio fundiário se instala. Defronte à Sta. Virgínia, a benesse custa R$15 mil, com casa novinha em folha. Mais: quem comprar se habilita a receber, do Incra, novos créditos agrários. De graça.

Nada funciona, porém, sem a comissão do chefe. Sendo tudo irregular, a propina corre solta. Como passe de mágica, autoridades públicas não tomam conhecimento das transações. Seguem o modelo do assentamento Dorcelina Folador, pioneiro na região, onde metade dos lotes já se foi. Fulano do município de Dourados já comprou oito lotes. Mas ninguém sabe de nada.

Pior é a subserviência. Quase 11 mil pessoas se encontram subordinadas a três fortes organizações políticas: MST, CUT e Fetagri. Estas se subdividem em dezenas de grupos políticos, arregimentando 30 a 50 famílias cada. Os articulados chefetes mandam a rodo. As assembléias decisórias parecem piada.

A grande jogada econômica reside no arrendamento rural. O frágil sucesso do assentamento da Itamaraty depende de esquema de corrupção jamais visto na reforma agrária. Ocorre que as áreas de exploração supostamente coletiva se encontram cedidas para produtores da região. Afirma-se por lá que, dos 87 pivôs de irrigação, cinco são conduzidos pelos próprios assentados. Os demais são explorados por forasteiros.

Os agentes públicos conhecem a maracutaia, mas entendem que, embora proibido, o arrendamento configura a melhor forma de assegurar renda para as famílias assentadas. Assim, ou fingem não ver ou participam do esquema financeiro. A renda é paga diretamente ao chefe do grupo, que a reparte entre os apadrinhados. Parece divisão de furto.

Soja, milho, algodão e mamona saem da Itamaraty como se gerados fossem pelo assentamento. Nessa ilusão produtiva, a pecuária também encontra seu nicho. Por R$7 cabeça/mês, alugam-se pastagens de capim braquiária. Preposto do frigorífico de Ponta Porã, só ele detém 800 bois na área reformada. O socialismo agrário se transforma em grossa picaretagem.

A triste realidade se impõe frente ao planejamento idealizado. Há, sim, tentativas sérias de aprimoramento técnico. Curiosamente, todavia, uma ONG carioca venceu a licitação para fornecimento de assistência agropecuária aos assentados. Na seqüência, fez uma triangulação financeira e repassou a tarefa para quatro entidades locais ligadas à CUT e ao MST. Tudo muito estranho.

Quando o presidente Lula visitou o assentamento Itamaraty, em 2003, entusiasmou-se e galgou uma colheitadeira. Feliz, iniciando o governo, afirmou que faria ali uma reforma agrária exemplar. A máquina que ele pilotou, entretanto, não pertencia aos assentados, mas, sim, aos forasteiros da malandragem.

Ninguém teve a coragem de contar ao presidente. Até hoje ele não sabe de nada.

XICO GRAZIANO é agrônomo e deputado federal (PSDB-SP). E-mail: xicograziano@terra.com.br.