Título: PROMISCUIDADE
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 14/09/2006, O País, p. 4

A decisão unânime de ontem do Tribunal de Contas da União, de abrir ¿tomada de contas especial¿ para averiguar se houve sobrepreço e o que houve de infração legal na despesa de R$11 milhões para a confecção de cartilhas de propaganda do governo Lula, é sinal de que há ¿indícios veementes¿ de irregularidades. Na definição de um ministro do TCU, ¿o processo todo é muito ruim contra estamentos palacianos¿. Além de ser mais um dos muitos casos de suspeita de irregularidade com dinheiro público em que diversos órgãos do governo se vêem envolvidos permanentemente, o caso da cartilha é mais uma demonstração da promiscuidade das relações entre o governo e o PT, talvez o cacoete mais danoso à democracia desta administração.

A melhor explicação que a Secretaria de Comunicação (Secom) encontrou para justificar o sumiço de cerca de dois milhões de cartilhas foi a de que as encaminhou diretamente ao PT para que os diretórios regionais do partido as distribuíssem e, assim, economizassem o dinheiro do governo.

Por essa explicação esdrúxula, o PT fez um favor ao governo. Um dos objetivos da investigação do TCU é exatamente saber quantas cartilhas foram impressas, pois há suspeitas de que grande parte delas simplesmente nunca existiu, e que o dinheiro correspondente teria sido desviado para outros fins, acusação que já existe em outros casos constatados nas várias CPIs que investigaram o mensalão e a corrupção nos Correios.

Por essas acusações, o ex-ministro da Secom, Luiz Gushiken, está incluído entre os 40 da organização criminosa denunciados pelo procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, assim como o publicitário Duda Mendonça, que confeccionou as cartilhas. Gushiken divulgou nota ontem estranhando que o processo do TCU tenha sido retomado às vésperas da eleição, insinuando intenções políticas por trás da decisão. Assim como a oposição estranha que o governo anuncie planos de estímulo à construção civil, ou que a Polícia Federal faça ações rocambolescas às vésperas da eleição.

Ironicamente, houve quem apontasse no pedido de vistas do ministro Marcos Vilaça uma tentativa de ajudar o governo, transferindo para depois das eleições a decisão do TCU. Acontece que Vilaça é sogro de José Mendonça Filho, o candidato a governador de Pernambuco pelo PFL, que sofre com a ação direta do presidente Lula a favor de seus dois concorrentes, os chamados ¿garotos de Lula¿, os ex-ministros Humberto Costa, do PT e Eduardo Campos, do PSB. Portanto, supondo que Vilaça tivesse interesses políticos no caso, seria contra o governo.

Esse seria mais um caso em que a propaganda oficial teria sido usada para, através de superfaturamento ou encomendas fantasmas, gerar dinheiro para financiamento político do PT e seus aliados. O PT admite oficialmente que recebeu e distribuiu cerca de 930 mil dessas cartilhas, mas não há comprovação disso, e diversos diretórios regionais negam que tenham recebido um exemplar sequer.

A cartilha, além de todos os problemas legais, tem mais um que está apenas subentendido no parecer do relator do processo, ministro Ubiratan Aguiar: a propaganda explícita do governo, o culto à personalidade de Lula, o que já foi motivo, em outra ocasião, de uma multa de R$900 mil cobrada pelo Tribunal Superior Eleitoral, a ser paga com dinheiro do próprio bolso do candidato-presidente.

Como em outras vezes, os governistas se defendem alegando que o governo anterior usava o mesmo tipo de propaganda, esquecendo-se de que, sempre que isso aconteceu, partiam do PT a denúncia ou as mais candentes acusações contra a administração de Fernando Henrique Cardoso.

Talvez o mal maior causado pelo governo petista tenha sido exatamente este: banalizar o erro, generalizar as acusações, transformando a ação política em uma massa disforme e malcheirosa cujo único objetivo seria a manutenção do poder a qualquer custo, o velho mote de que o fim justifica os meios.

Assim como foi bem-sucedido na tarefa de vender ao país a necessidade de mudanças na economia, sendo eleito em 2002 para continuar a mesma política, propondo e realizando as mesmas reformas que acusava de neoliberais anteriormente, o presidente Lula está tendo êxito no convencimento da maioria do eleitorado de que não há nenhum problema na corrupção em si, que seria inerente ao sistema político em vigor.

Esse convencimento, se está gerando votos, está também instalando a apatia na campanha eleitoral. Não há ânimo em defender uma candidatura que começa em bases tão frágeis, e é tão vulnerável na questão ética. O ¿apoio crítico¿ de Chico Buarque é bom indicador desse desânimo cívico. O PT está organizando diversas passeatas para os próximos dias, para demonstrar o vigor de sua militância, distante das ruas até o momento. Para tanto, estão sendo mobilizados os chamados ¿movimentos sociais¿, os sindicatos e a UNE.

A intenção é marcar posição também contra uma possível campanha da oposição por um impeachment de Lula, devido exatamente ao caso das cartilhas, que o presidente do PSDB, senador Tasso Jereissati, considera ser um ¿crime de responsabilidade¿. O fato é que, com todas as acusações, não há petista capaz de argumentar que não houve mensalão, ou que não há corrupção no governo. Existem apenas duas linhas de ação: o presidente Lula não sabia de nada, e as coisas são assim mesmo.

O governo Lula conseguiu banalizar a corrupção na política brasileira, e até eleitores das camadas mais escolarizadas e de maior nível de renda, os chamados ¿formadores de opinião¿, aceitam sem constrangimentos esse novo padrão moral. (Continua amanhã)