Título: MAIS SALAS DE CINEMA PARA O BRASIL
Autor: Nilson Rodrigues
Fonte: O Globo, 15/09/2006, Opinião, p. 7

Quando se fala em indústria audiovisual, a questão implica necessariamente o cinema no circuito de salas de exibição como vértice da produção audiovisual mundial. Como se explica, então, que o Brasil, tendo um mercado audiovisual vigoroso, com videolocadoras na quase totalidade dos seus municípios e uma produção de televisão reconhecida nacionalmente e no exterior, apresente um dos mais baixos índices mundiais quanto à freqüência de sua população às salas de cinema? No Brasil, lamentavelmente, não é incomum encontrar pessoas que nunca entraram numa sala de cinema.

O saudável hábito de ir ao cinema é prezado como das mais importantes atividades de lazer urbano em todo o mundo, associado que está à socialização comunitária e à construção da cidadania. Por outro lado, ao afastarmos o público do filme brasileiro, estamos na verdade deixando de refletir, por meio do cinema, sobre a realidade brasileira, sobre o que somos e o que queremos ser.

Em verdade, chegamos a esse ponto menos pela ausência de um hábito que se perdeu do que pela falta de oferta de salas e pela elevação do custo do ingresso. A partir das décadas de 60 e 70, a penetração da televisão e, em seguida, do vídeo e da TV por assinatura fizeram o público de cinema se reduzir drasticamente. Sintomaticamente, o afastamento do filme brasileiro do cenário contribuiu bastante para essa redução, uma vez que ele levava para os cinemas uma grande faixa do público, bastante popular, que não era atraída por outro tipo de filme. Dessa forma, se em 1980 o total de ingressos vendidos foi de quase 165 milhões, esse número foi caindo até chegar a 70 milhões, em 1993. O número de salas do país, que era de 2.365 em 1980, baixou para 1.033 em 1995. No começo da década de 90, cinemas, principalmente do interior, foram fechando melancolicamente suas portas. Cidades pequenas que tinham uma ou duas telas ficaram sem nenhuma, a ponto de hoje apenas 7% dos municípios brasileiros possuírem salas, segundo o IBGE.

A reversão relativa desse quadro começou em meados dos anos 90. Ajudados pela estabilidade monetária, os exibidores subiram consideravelmente o preço médio do ingresso no Brasil. Desse modo, mesmo com um reduzido número de salas, o setor da exibição conseguiu manter o patamar de arrecadação do setor. Enquanto nos Estados Unidos o preço do ingresso estava em torno de US$5, no Brasil o preço médio nunca ultrapassou a marca dos US$2. Atualmente se situa em torno de US$3,5, o que é alto para os padrões do custo de vida brasileiro, considerando ainda outras despesas que o ato de ir ao cinema hoje envolve. Foi assim que se iniciou o processo de elitização que mudou radicalmente o perfil do espectador de cinema no Brasil.

Em 1996, um ano antes da entrada do sistema de exibição de conjuntos de salas multiplex em shoppings no mercado nacional, o Brasil tinha uma sala de cinema para cada 120 mil habitantes, uma das piores relações do mundo. Em 2001, mesmo depois de ter conseguido melhorar essa proporção com a inauguração de centenas de salas, chegou à marca de uma sala de cinema para cada 105 mil habitantes. Para efeito de comparação, os Estados Unidos têm uma sala para cada 10 mil habitantes, e o México e a Argentina uma para cerca de 35 mil habitantes.

Cabe ainda ressaltar que, embora o número de salas tenha voltado a crescer, o número de cadeiras decresceu consideravelmente, na medida em que as novas salas multiplex são menores que as antigas salas dos cinemas de rua. A exibição cinematográfica, ao se transferir para novas ilhas de consumo e optar por ingressos de preço alto, solidificou o processo de elitização de seu público.

Entre 1995 e o fim de 2002, o número de salas no Brasil passou de cerca de mil para perto de 1.700, calculando-se hoje em torno de 2.100, com cerca de 65% localizadas em centros comerciais. Estima-se, no entanto, que o mercado brasileiro comporte pelo menos 5 mil salas, número considerado satisfatório para a dimensão do país, para o tamanho de sua população e também para sua auto-sustentabilidade. Tal quantidade representaria uma relação próxima de 30 mil habitantes por sala, igualando-se à proporção dos mercados mexicano e argentino.

Por outro lado, as experiências de implantação das salas multiplex no Brasil mostraram, ainda, que a concentração de renda do país é um obstáculo para a continuidade da expansão do circuito exibidor, fato que foi referendado pela grande concentração do mercado consumidor em geral e de espectadores de cinema em particular no eixo Rio-São Paulo.

Considerando estar comprovado que a grande maioria das cidades médias e pequenas, assim como das periferias dos grandes centros urbanos, carece dramaticamente de espaços de lazer que atendam minimamente às comunidades, urge que se implante, a curto e médio prazos, uma política de fomento público que viabilize a abertura de novos circuitos de salas exibidoras de cinema. Com utilização das novas tecnologias digitais de exibição, que reduzem sensivelmente os custos da distribuição e da exibição cinematográficas, é perfeitamente viável pôr em prática um programa de financiamento, integrado pelos ministérios da Cultura e das Cidades, articulado com os municípios, para ampliação, renovação e modernização do parque exibidor brasileiro.

Um programa desta envergadura, ao contemplar a abertura de salas de cinema nos pequenos e médios municípios e periferias das grandes cidades, certamente entraria para a história como das mais notáveis contribuições do governo à melhoria das condições da vida urbana no país. Além disso, seria um efetivo impulso para a auto-sustentabilidade do cinema nacional, que poderia vir a ter no ingresso vendido uma forma complementar de financiamento da atividade.

NILSON RODRIGUES é diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine).