Título: O segundo golpe
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 15/09/2006, Economia, p. 28

A Bolívia atacou de novo. Decidiu que a Petrobras tem que entregar seu fluxo de caixa das refinarias à YPFB. As duas refinarias produzem os combustíveis que abastecem a Bolívia e exportam excedentes. Nada têm a ver com o gás vendido ao Brasil. Mas o desrespeito aos contratos é o mesmo. A Bolívia demonstra que, enquanto for governada por Morales, não é um parceiro confiável.

O gás natural exportado para o Brasil é uma coisa; os combustíveis produzidos pelas refinarias são outra. O gás é fundamental para o Brasil. As refinarias são importantes para a Bolívia. Foram compradas pela Petrobras até por pedido da própria Bolívia, anos atrás, e representam uma parcela pequena dos ganhos da empresa no país. A estatal brasileira pode ficar sem elas, porque isso não afetará o consumo brasileiro e até o prejuízo será pequeno dado o tamanho da operação da empresa brasileira.

Mas as duas áreas estão ligadas. Sérgio Gabrielli tentou provar que são coisas diferentes. Mas não existem compartimentos estanques em economia.

O que aconteceu nos dois ataques do governo Evo Morales aos interesses da Petrobras torna qualquer investimento no país um negócio de alto risco. Os fatos uniram os dois lados do negócio da empresa lá.

Com isso, aumenta a incerteza de investir na Bolívia. Sem novos investimentos, não haverá a oferta futura com a qual o Brasil supriria a demanda de energia para o setor industrial e residencial, que será crescente nos próximos anos.

O governo boliviano fez tudo da mesma forma: fingiu negociar e, quando estava tudo pronto, baixou um decreto que rasga contratos e confisca direitos. O caso da Bolívia é uma história de erros sucessivos do governo brasileiro. Ao ser leniente com o primeiro ataque, o governo abriu a guarda para o segundo golpe.

Hoje a crise da Bolívia torna mais aguda e mais presente a escassez de energia que o Brasil enfrentará. O governo Lula não licitou nenhuma nova grande hidrelétrica em quatro anos. As empresas paulistas foram estimuladas pela Petrobras a converter seus equipamentos para gás natural. Isso por dois motivos: tinha gás sobrando com a construção do gasoduto, e o gás natural tem enorme vantagem ambiental. A demanda cresceu, o Brasil ficou dependente, a Bolívia resolveu atacar a Petrobras para fazer proselitismo por razões político-eleitorais. Quando percebeu, depois, que não tinha recursos nem meios de tocar as refinarias, a YPFB, empresa que hoje é pouco mais que um escritório, foi beneficiada com o decreto de ontem, que dá a ela o direito de se apropriar das receitas da empresa brasileira.

A decisão resolve o problema de falta de recursos da YPFB, mas, além disso, tem outra vantagem política. Num momento em que Morales começa a ser contestado, a medida visa também a fortalecer a popularidade do presidente boliviano.

O primeiro erro foi o governo e a Petrobras ignorarem todos os avisos dados pela radicalização do discurso de Evo Morales no começo de todo esse processo. Naquele momento, o governo deveria ter adotado ações preventivas, com missões diplomáticas que pudessem dissuadir Morales de fazer o que fez, mostrando o que ele teria a perder atingindo a empresa que mais investe no país e enfraquecendo a confiança do seu maior parceiro.

Essas missões não aconteceram porque a atual direção da Petrobras achava que nada lhe ocorreria já que a empresa é grande demais na Bolívia. Eles não ousariam, dizia-se na Petrobras.

Os bolivianos não só ousaram, como o fizeram de forma espalhafatosa, com ocupação militar das instalações da empresa.

O governo Lula cometeu, então, o segundo erro. Avaliou que a Bolívia, por ser um país pobre, podia fazer o que fez. O próprio presidente Lula participou de um encontro patético em que o presidente Hugo Chávez assumiu o papel de líder continental e pediu indenização para a Bolívia. O Brasil concordou. Em seguida, mostrou que não era só palavra: o governo Lula ofereceu ajuda e financiamento do BNDES à Bolívia.

A avaliação que o governo fez, na época, é que o endurecimento de Morales era só para ganhar as eleições para a Constituinte. E que, passada a eleição, tudo voltaria ao normal. Outro erro.

A Petrobras iniciou, então, uma negociação para ser indenizada pela perda das refinarias, como manda a lei boliviana. Quando a negociação chegava ao fim, o governo boliviano fez o que tinha feito no começo: atropelou a empresa.

Quando houve a ocupação militar das refinarias, Evo Morales estava perdendo popularidade. Em duas semanas, recuperou toda a popularidade perdida e ganhou as eleições para a Constituinte. Agora, ele está enfrentando contestação política, principalmente nos departamentos mais ricos, como Santa Cruz de la Sierra, onde o presidente boliviano tem a oposição mais forte. É exatamente nesse departamento em que está uma das refinarias.

Atacar os interesses do Brasil virou um grande negócio, com vantagens políticas e econômicas. E sem nenhum ônus, já que o governo brasileiro considera normal que um país pobre invista contra os interesses do Brasil.