Título: Ira islâmica contra o Papa
Autor:
Fonte: O Globo, 16/09/2006, O Mundo, p. 38
Muçulmanos protestam, exigem pedido de desculpas e dizem que Bento XVI não entende Islã
CIDADE DE GAZA e ROMA
Muçulmanos protestaram nas ruas de vários países, como Índia, Paquistão, Turquia e Egito, e praticamente todos os principais líderes religiosos do islamismo criticaram as declarações do Papa Bento XVI sobre Maomé e sua religião esta semana. A reação lembra a provocada pelas charges do profeta publicadas na imprensa ocidental e já preocupa setores do Vaticano sobre a segurança do Pontífice.
Num discurso terça-feira em Ratisbona, na Alemanha, Bento XVI afirmou que o ensinamento islâmico ¿não está preso por qualquer de nossas categorias (ocidentais), mesmo a da racionalidade¿; falou sobre o conceito de jihad como sinônimo de guerra santa; e, citando declaração de um imperador bizantino do século XIV, disse: ¿Mostre-me o que Maomé trouxe que era novidade, e você encontrará coisas apenas más e desumanas, como a sua ordem para espalhar pela espada a fé que ele pregava.¿
Um alto funcionário da Santa Sé disse temer pela segurança do Papa:
¿ Ao mesmo tempo em que penso que a controvérsia passará, ela provocou algum dano e, se fosse especialista em segurança, estaria preocupado.
A maior manifestação de protesto ocorreu na Cidade de Gaza, onde cerca de cinco mil pessoas saíram às ruas. Em Gaza, uma granada foi lançada contra um centro de jovens da Igreja Ortodoxa Grega, que não é ligada à Igreja Católica. Não houve feridos.
¿ Em nome do povo palestino, expressamos nossa condenação às declarações de sua Excelência, o Papa, contra o Islã enquanto crença, lei, história e estilo de vida ¿ disse Ismail Haniyeh, premier do Hamas.
As palavras do Papa também provocaram centenas de manifestações de menor porte após as orações islâmicas de sexta-feira em diversos países. Importantes autoridades religiosas islâmicas manifestaram desagrado. Um deles foi o xeque Mohamed Tantawi, da universidade al-Azhar, no Cairo, o mais importante centro de estudos islâmicos do mundo.
¿ A al-Azhar afirma que estas declarações indicam uma clara ignorância do Islã ¿ disse Tantawi.
¿ Condenamos e queremos uma explicação para isso, e qual a intenção por trás disso. Queremos que o Papa peça desculpas à nação islâmica porque ele insultou sua religião e seu profeta, sua fé e sua lei sem qualquer justificativa ¿ disse o xeque qatariano Youssef al-Qardawi, chefe da Associação de Acadêmicos Islâmicos.
Líderes religiosos em Irã, Paquistão, Indonésia e Arábia Saudita também protestaram.
Reação política também é forte
A reação política no mundo islâmico foi tão ou mais forte que a religiosa. A Organização para a Conferência Islâmica (OCI), que reúne 57 países, divulgou uma nota na qual diz que as palavras do Papa representam ¿um assassinato do caráter do profeta Maomé¿ e ¿uma campanha de difamação¿: ¿A OCI espera que esta campanha não seja o prelúdio de uma nova política do Vaticano em relação ao Islã.¿
O Parlamento paquistanês aprovou, por unanimidade, uma resolução que condena as declarações do Papa. O embaixador egípcio no Vaticano pediu explicações à Santa Sé.
Entre os políticos ocidentais, o único a defender o Papa foi a chanceler federal alemã, Angela Merkel.
¿Quem critica o Papa não entendeu a intenção do discurso. Foi um convite ao diálogo entre as religiões¿, escreveu a chanceler, num texto que será publicado hoje pela imprensa alemã.
Percebendo o aumento na reação do mundo islâmico às declarações de Bento XVI, o Vaticano emitiu um segundo comunicado ontem, 24 horas depois de ter lançado outra nota: ¿O Papa não tinha, em absoluto, intenção de fazer um estudo profundo sobre a jihad nem sobre o pensamento muçulmano, e menos ainda de ofender a sensibilidade dos fiéis muçulmanos.¿
¿ O que é importante para o Papa é rechaçar de forma clara qualquer motivação religiosa da violência ¿ disse o porta-voz da Santa Sé, Federico Lombardi. ¿ O Papa quer cultivar uma atitude de respeito e de diálogo com as outras religiões e culturas e, evidentemente, com o Islã.
O próprio Bento XVI, no entanto, ainda não fez qualquer comentário sobre a reação a suas declarações.
Dentro da Santa Sé a reação também foi de perplexidade. Uma fonte de dentro do Vaticano acredita que o Papa pode ter misturado seu papel anterior, de teólogo, com o atual:
¿ O que se pode falar como acadêmico é uma coisa, o que um Papa pode dizer é outra.
Um diplomata arrematou:
¿ Fiquei muito surpreso. Ele se colocou numa posição difícil e será interessante ver o que fará agora.
Outro diplomata, porém, gostou do discurso, que, segundo ele, ¿disse que uma espada é uma espada¿:
¿ É um chamado aos cristãos. Será interessante ver o que ocorrerá agora, mas não acho que ele pedirá desculpas, nem penso que deva fazê-lo.
¿ Ao falar do profeta Maomé e do Alcorão, Bento XVI violou um tabu ¿ disse o sociólogo italiano Renzo Guolo. ¿ As religiões podem falar entre elas de ética, paz ou família, mas não dos textos sagrados do outro, porque isso provoca uma imediata reação.
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