Título: NO PARAÍSO DA BUROCRACIA, 40 NOVAS REGRAS POR DIA
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 17/09/2006, O País, p. 14

Protestos de eleitores contra o excesso de normas no país faz políticos mudarem agenda de campanha eleitoral

Já se passaram 2.780 dias desde que o geólogo Fernando Mello, de 62 anos, levou a um órgão público os primeiros papéis exigidos para abrir uma pequena empresa engarrafadora de água mineral no município de Paulo de Frontin, a cem quilômetros do Rio.

A indústria ficou pronta em meados de 2002. Plantada a 400 metros de altitude, na Serra do Mar, tem laboratório e máquinas instaladas, asfalto da prefeitura na porta e dois empregados limpando o terreno em volta.

Da Água Mineral Mata Atlântica não sai um único copo. Só papel: Mello acaba de completar sete anos e sete meses de peregrinação por guichês do serviço público entregando documentos, mas ainda não pode produzir nada ¿ há 30 semanas aguarda licenças da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

¿ É uma experiência kafkiana ¿ desabafa. ¿ Em sete anos investi R$360 mil, perdi sócios, tive que demitir empregados e fui obrigado até a vender parte das máquinas para poder cumprir as exigências desses órgãos.

Mello vive em um país transformado em paraíso da burocracia, onde se criam 40 regras gerais por dia útil. Ou seja, cinco por hora de expediente nas repartições federais, estaduais e municipais sob formas variadas ¿ medidas provisórias, leis, decretos, portarias, resoluções, instruções, pareceres normativos e atos declaratórios, entre outros.

Cada regulamento contém em média 11,2 artigos ou disposições. Significa que, de segunda a sexta-feira, empresas e cidadãos amanhecem com 448 novas diretrizes para seguir na sua relação com o Estado ¿ de acordo com cálculos da Federação do Comércio de São Paulo, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da Universidade de São Paulo, e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

A burocracia cresceu e soterrando todos os projetos anunciados nas últimas três décadas para desregulamentar as relações da sociedade com o Estado.

As queixas se multiplicam, principalmente entre empresários, constatam candidatos ao governo do Estado do Rio como Sérgio Cabral (PSDB), Denise Frossard (PPS) e Eduardo Paes (PSDB). Por causa dessa pressão de eleitores, alguns candidatos ao Congresso mudaram sua agenda eleitoral. É o caso de Miro Teixeira (PDT-RJ), que tenta a reeleição para a Câmara:

¿ Não previa e acabei obrigado a incluir o tema na campanha ¿ ele conta. ¿ As pessoas se lamentam muito. Ainda não organizaram o pensamento, mas já é perceptível que a sociedade começou a moldar o conceito de contribuinte.

É reação ao hábito governamental de tratar cidadãos e empresas como se fossem seus empregados, impondo excentricidades como a exigência de ¿Certificado de Desnecessidade¿, no qual fica certificado que não é necessário um certificado.

Para se abrir uma empresa, por exemplo, é necessário apresentar cerca de 80 documentos e esperar o fim de 17 procedimentos administrativos. Isso leva 152 dias, em média. Pior, só no Laos, Congo, Moçambique e Haiti, informa o Banco Mundial em uma análise sobre 144 países.

Fechar uma empresa é muito mais complicado, caro e demorado: nada menos que 3.650 dias ¿ isto é, dez anos ¿ de tramitação burocrática. No Haiti é mais rápido, seis anos. E na Irlanda leva-se apenas quatro meses.

Para se conseguir uma carteira de identidade, o prazo é variável. Em São Paulo gasta-se meia hora. Já no Rio é preciso esperar até 50 dias, informa o Portal do Cidadão na internet. Para renovação dessa carteira, as pessoas são intimadas a apresentar, de novo, todos os documentos ¿ certidão de casamento, certificado de alistamento militar e título de eleitor.

No Rio, onde o desemprego é recorde, gasta-se menos tempo para se encontrar um trabalho informal do que para se conseguir uma carteira de trabalho: o prazo mínimo é de cinco semanas, de acordo com a seção "Facilitando a sua vida", do programa governamental "Rio Simples".

Somente um em cada quatro brasileiros tem computador, mas os órgãos públicos costumam exigir de todos certidões negativas que só podem ser obtidas pela internet.

As certidões negativas são atestados de "nada consta" emitidos de uma repartição pública para outra. Trata-se da lei maior da burocracia: cidadãos e empresas são suspeitos até prova em contrário. E o ônus da prova de inocência é sempre deles, embora o Estado já tenha a informação.

Essa lógica deixa, por exemplo, a Receita Federal com a possibilidade de interpelar qualquer firma sobre cobranças de dívidas até cinco anos depois de realizado o negócio no qual, supostamente, houve uma dívida tributária. Cabe à empresa provar a inexistência de débito com o fisco.

Existem 5,5 milhões de inscrições no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídica. Mas, segundo o IBGE, apenas 2,3 milhões estão em atividade. Para se manter dentro da lei, todas vivem uma rotina infernal nas relações com o Estado.

Isso porque o Brasil é um país no qual se criam em média 36 normas tributárias por dia ¿ mais de uma por hora ¿, nos escritórios federais, estaduais e nas repartições dos 5.562 municípios.

Estima-se que estejam em vigor 16,2 mil normas fiscais. Elas compõem um conjunto de 181,9 mil artigos, 423,9 mil parágrafos, 1,3 milhão de incisos e 178,3 mil alíneas.

Aumenta todo dia. Exemplo: há pouco, o governo federal acrescentou um papel à miríade de documentos que as empresas têm manter sobre o recolhimento do PIS/Cofins. É o Demonstrativo de Apuração das Contribuições Federais, que os burocratas fiscais tratam, na intimidade, por ¿Dacon¿.

Não há empresa ou indivíduo que consiga acompanhar, de forma literal, as mudanças na legislação fiscal. Por isso florescem a informalidade e as consultorias de "planejamento tributário", ao mesmo tempo em que incham os departamentos administrativos das empresas.

As atividades de atendimento regulatório consomem 7,6% do tempo administrativo das companhias brasileiras, informa a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da Universidade de São Paulo. É quase o dobro da média apurada pelo Banco Mundial na América Latina (4,1%). Nisso, o Brasil só é superado pelo Haiti.

Representa, também, um custo relevante. Uma grande empresa nacional gasta, em média, 0,33% de seu faturamento para custear a burocracia necessária ao cumprimento das obrigações fiscais. Esse cálculo não inclui o pagamento do tributo, esclarece a Fipe.

Quanto menor a firma, maior é o gasto com a burocracia. Pesquisadores da Fipe encontraram casos nos quais as despesas regulatórias chegaram a 1,7% do faturamento de empresas cuja receita anual é inferior a R$100 milhões.

¿ Esses encargos administrativos foram quase equivalentes ao custo anual da CPMF, no caso das grandes empresas, e a meia Cofins no caso das menores ¿ relatou a economista Maria Helena Zockum em uma reunião realizada no mês passado na Federação do Comércio de São Paulo.

Em meio ao caos jurídico e tributário, governos em todos os níveis encontraram no Judiciário um instrumento quase perfeito para impor cobranças do fisco, cuja estrutura é insuficiente até mesmo para acompanhar as mudanças na legislação.

Resultado: sete em cada dez processos em trânsito atualmente pela Justiça brasileira são propostos pelo Executivo e estão em juizados especiais, demonstram estudos do instituto IO-Thomson, da Câmara Americana de Comércio e da Confederação Nacional da Indústria.

O Executivo se tornou o grande cliente da Justiça brasileira. Entre os órgãos públicos federais, a Caixa Econômica e a Previdência Social se destacam. E o volume de ações no Judiciário cresce de maneira exponencial.

O Supremo Tribunal Federal está com 160 mil processos em andamento, dois terços deles promovidos pelo Executivo. Em média, cada juiz do Supremo recebe mil processos novos por mês. Alguns deles há tempos têm advertido para uma provável inviabilidade do sistema em futuro próximo.

É nesse contexto que a burocracia ambiental viceja e, por vezes, inviabiliza empreendimentos como o da pequena engarrafadora de água mineral de Paulo de Frontin.

O caráter de modernidade da legislação ambiental brasileira, reconhecido mundialmente, contrasta com o tempo médio para a emissão de licenças estatais no setor. São dois anos, dependendo do estado, em um dos longos ciclos de tramitação burocrática do planeta, como registra a Fecomércio-SP em estudo comparativo.

Países com fama de rigor nesse tipo de análise levam em conta o custo do tempo sobre os investimentos e tentam formas de acelerar os processos. A média é de um ano nos Estados Unidos, seis meses na Holanda, cinco meses na Inglaterra, Dinamarca e Noruega. Na Argentina e China leva-se seis meses.

As empresas brasileiras, conforme o setor de atividade e estado em que se localiza, gastam pelo menos um ano somente na coleta da documentação exigida pelos órgãos federais e estaduais. No Rio, por exemplo, "cada caso é um caso" ¿ considera a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema).

¿ O que falta é bom senso ¿ argumenta Fernando Mello, da Água Mineral Mata Atlântica. Exemplifica com sua história: ¿ O DNPM trata água mineral com os mesmos procedimentos exigidos para minérios como ferro, chumbo, etc. A Feema/RJ enxerga a indústria de água mineral como um grande agente poluidor. E a Anvisa considera a produção de água mineral a mesma coisa que fabricação de massas, com todas as regras pertinentes, tais como controle de processos dos fornecedores, depósitos e controle de pragas urbanas, entre outras coisas.

Mello não esquece uma das visitas de um fiscal da Feema.

¿ Você tem que tomar cuidado ¿ advertiu o funcionário.

¿ Com o quê? ¿ quis saber o empresário.

¿ Com os seus insumos, ora!

¿ Mas, homem, meu insumo é a água.